sábado, 27 de julho de 2019

Do Gordo ao Moro: a expulsão de estrangeiros no Brasil republicano



Em 7 janeiro de 1907, o presidente Afonso Pena assinou o decreto que sancionava a primeira lei de expulsão de estrangeiros do período republicano. Ficou conhecida como a Lei Adolfo Gordo, em alusão a um parlamentar paulista cujo projeto estava engavetado no Congresso Nacional desde 1902. A própria trajetória de Adolfo Afonso da Silva Gordo, constituinte em 1891 e autor desta lei acusada de inconstitucionalidade, é reveladora das tensões políticas da Primeira República. Em 1902 a Argentina, concorrente do Brasil na atração de migrantes europeus, havia aprovado uma lei de expulsão de estrangeiros que ampliou os poderes da polícia portenha para deportar os chamados “indesejáveis”, a maioria deles militantes anarquistas italianos e espanhóis.

Embarcados em Buenos Aires, os navios que os transportavam tinham escalas em Montevidéu, Santos, Rio de Janeiro e outros portos atlânticos. As fugas dos desterrados nessas escalas portuárias inquietaram as autoridades policiais brasileiras, que reclamaram a sanção de uma “lei dos indesejáveis” no país, apesar de a deportação de anarquistas já ser praticada em forma sumária e sem lei desde os anos do Marechal de Ferro. Em 1894 um primeiro projeto de expulsão de estrangeiros foi aprovado pela Câmara dos Deputados, mas naufragou no Senado. Oito anos mais tarde, Adolfo Gordo elaborou outro projeto, de novo rejeitado pelos senadores. Porém, o recrudescimento das greves operárias mudou a sorte da lei, que foi finalmente aprovada no ocaso do ano de 1906. O texto do decreto assinado pelo presidente Afonso Pena mobilizava uma linguagem jurídica e política que se espalhava pelo mundo desde o século XIX: a defesa da “segurança nacional” e a noção de “estado perigoso” adquiriam peso nos foros internacionais do direito penal, exercendo pressão nos governos para a incorporação de novos marcos legais autoritários fundados no princípio de periculosidade.

A familiaridade com a portaria número 666, assinada pelo ministro Sérgio Moro, é notória. A lei de 1907 estabelecia que o estrangeiro que, por “qualquer motivo”, comprometesse a “segurança nacional” ou a “tranquilidade pública” poderia ser expulso do território nacional. Cem anos mais tarde, em 2017, o Congresso Nacional sancionou uma nova Lei de Imigração que define a expulsão de estrangeiros como uma “medida administrativa de retirada compulsória do território nacional”. Esta nova lei revogou o Estatuto do Estrangeiro de 1980, que ainda previa a prática da expulsão fundada em “indícios sérios de periculosidade ou indesejabilidade do estrangeiro”. Ao revogar este Estatuto, a lei de 2017 deixava de lado o enferrujado vocabulário da periculosidade. Porém, de maneira irresponsável e autoritária, a portaria de “deportação sumária” do Ministério da Justiça e Segurança Pública – que justamente regulamenta a prática administrativa da expulsão estabelecida pela nova Lei de Imigração – repõe o velho conceito de “pessoa perigosa”. Ao ser questionado pela publicação desta portaria em meio dos ataques do Ministério de Moro ao jornalista norte-americano Glenn Greenwald, o diretor do Departamento de Migrações, André Furquim, defendeu-se confirmando a centralidade desse conceito: a portaria – disse – era um “ato de rotina” ministerial e um instrumento necessário no intuito de dar “agilidade para o Estado retirar pessoas perigosas que nem deveriam ter entrado no Brasil”.

Mais uma vez, como em 1907, a construção do processo de expulsão fica nas mãos da polícia, soberana na hermenêutica da periculosidade. Ainda que a Lei Adolfo Gordo exigisse que os estrangeiros expulsos tivessem condenações por “delitos de natureza comum”, duas brechas se abriram nos interstícios da prática da lei em sede policial. Por um lado, o enquadramento do anarquismo como crime dito comum eludia o custo político dos usos da lei como castigo a opositores. Por outro lado, a incorporação na lei das categorias de “vagabundagem”, “mendicidade” e “lenocínio” como causais de expulsão dava grande margem de arbitrariedade à polícia na construção inicial do processo. Na nova portaria, as justificativas da expulsão mudaram em relação ao texto de 1907: em lugar de vagabundos e mendigos se destacam as também ambíguas e manipuláveis figuras do “terrorismo” e da “associação criminosa”. Nada melhor do que examinar o que aconteceu após a sanção da lei dos indesejáveis de 1907 no domínio da prática policial das expulsões para ponderar os riscos reais da portaria do Moro.

O riquíssimo acervo de processos de expulsão de estrangeiros preservado na sede carioca do Arquivo Nacional mostra que a exceção teve mais força que a regra. Dos mais de novecentos estrangeiros expulsos entre 1907 e 1929, aproximadamente duzentos eram anarquistas e comunistas e outros trezentos foram acusados de explorar mulheres para a prostituição, em simulacros de processo judicial, com depoimentos de “testemunhas” que não passavam de funcionários policiais repetindo sempre o mesmo roteiro, como foi estudado pelas historiadoras Lená Medeiros de Menezes e Cristiana Schettini Pereira. Muitos outros estrangeiros foram expulsos por acusações que respondiam mais ao jargão policial do que à letra da lei: numerosos portugueses, italianos e espanhóis foram obrigados a embarcar a Europa após serem classificados como “vadios” e “desordeiros” contumazes, enquanto centos de indivíduos de diversas nacionalidades abandonaram forçosamente o país por incriminação de “gatunagem”. Inclusive nos casos dos criminosos comuns, apontados como ladrões, vigaristas e falsários internacionais, as provas anexadas nos autos respondiam mais a trocas de informações com as polícias da Europa e da América do Sul que a evidências de condenações judiciais no Brasil e no exterior.

Estas arbitrariedades foram fartamente denunciadas pelos jornais operários e pelos periódicos que as coletividades de imigrantes publicavam em suas próprias línguas. Nos numerosos protestos operários da Primeira República e, em particular, na greve geral de 1917, os líderes de nacionalidade estrangeira foram sumariamente expulsos e a liberdade de imprensa também foi atingida. Não por acaso, o primeiro grande escândalo público pela aplicação da lei de expulsão de estrangeiros envolveu um jornalista. Em julho de 1908, a polícia paulista prendeu o italiano Vicente Vacirca, fundador da edição brasileira do jornal socialista Avanti! O então secretário de Justiça e Segurança Pública do estado de São Paulo, Washington Luís, mandou um comissário de polícia investigar o suposto envolvimento de Vacirca na greve geral daquele ano. Com o relatório em mãos, Washington Luís pediu ao Ministro da Justiça a expulsão do jornalista, que foi concedida de imediato.

Vacirca foi detido no dia 16 de julho de 1908 e a polícia autorizou que, em lugar da Itália natal, fosse expulso para a Argentina, onde tinha laços com os socialistas do Rio da Prata. Pouco depois do anúncio da expulsão e com Vacirca preso nos calabouços policiais, os leitores dos jornais se inteiraram de um recurso de habeas corpus, rapidamente recusado por um juiz federal (decisão que, mais tarde, repetiria o Supremo Tribunal). No dia seguinte, Vacirca foi despachado no primeiro trem da S. Paulo Railway rumo ao porto de Santos, escoltado por um policial que não o abandonou até que o vapor Presidente Montt se perdeu no horizonte. Tudo foi decidido em questão de horas: entre o decreto de expulsão e o embarque em Santos não passaram nem três dias. Desde Roma até Buenos Aires, a imprensa internacional pedia a derrogação desta medida com evidentes motivações políticas e o episódio transformou-se no “caso Vacirca” (hoje objeto da dissertação de mestrado de Isabella Furtado Alves na PUC-Rio).

Por suas constantes críticas às condições de vida dos trabalhadores italianos nas fazendas e nas fábricas, os periódicos oficialistas reclamavam ao governo o uso de medidas policiais para “fechar a boca do insolente” escritor italiano, como escreveu um repórter do jornal Comércio de São Paulo. Com a expulsão consumada, esses mesmos periódicos defenderam os procuradores e juízes que negaram todos recursos da defesa. Defenderam, inclusive, a ação da polícia, que acusou o jornalista de cumplicidade com o anarquismo, quando, na verdade, seus laços militantes eram no campo socialista. Vacirca não conseguiu voltar mais ao Brasil e prosseguiu sua luta itinerante pela Argentina, Estados Unidos, Áustria e Itália, onde somou-se às fileiras da militância antifascista. Nos mesmos anos, seu perseguidor Washington Luís passou da Secretaria de Justiça e Segurança Pública a ser Prefeito de São Paulo, Governador do Estado, Senador e, finalmente, Presidente da República.

A história da Lei Adolfo Gordo e do caso Vacirca sugere que estas medidas de exceção que ferem as garantias constitucionais, em nome da segurança nacional, são apenas ferramentas para transformar o destino dos estrangeiros em “casos de polícia”, colocando vidas sob suspeita de crimes arquitetados em falsas alegações. Como em começos do século XX, hoje as repúblicas sul-americanas corroem direitos de cidadania para atacar fantasiosas conspirações internacionais. Na Argentina de Mauricio Macri e no Brasil de Jair Bolsonaro a expulsão de estrangeiros recobra vida. Este ano, a ministra de Segurança do país vizinho, Patricia Bullrich, protagonizou a façanha de três conflitos diplomáticos em apenas quatro dias pelo atropelamento dos direitos de estrangeiros em território argentino: dois artistas chilenos foram presos “confundidos” com terroristas, uma atleta olímpica colombiana foi detida várias horas no aeroporto de Mendoza para “averiguação dos antecedentes judiciais” e a equipe inteira da seleção de futsal de Paquistão foi deportada no aeroporto de Ezeiza por questões de “segurança nacional”, sem a mais remota prova. No Brasil, onde procuradores, juízes e policiais ignoram até as garantias processuais de ex-presidentes, a mefistofélica portaria 666 nos deixa – aos estrangeiros residentes no país – a mercê de todas as arbitrariedades possíveis.

Diego Galeano
Historiador nascido na Argentina e professor do Departamento de História da PUC-Rio. Autor do livro Criminosos viajantes: circulações transnacionais entre Rio de Janeiro e Buenos Aires, 1890-1930 (Prêmio Arquivo Nacional 2013), no qual estudou as práticas policiais de expulsão de estrangeiros e o surgimento da cooperação policial sul-americana.

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Do Caso EJ à Lava-jato

     Em artigo publicado na Folha de São Paulo do último dia 16 de junho, o economista Marcos Lisboa critica a divulgação de conversas entre os procuradores e o juiz Sergio Moro feita pelo site The Intercept. Para ilustrar seu argumento, usa o exemplo de Eduardo Jorge Caldas, ex-ministro do governo Fernando Henrique que foi alvo no ano 2000 de uma maciça campanha de acusações capitaneadas pelo Ministério Público e encampadas pela imprensa. Seria, para ele, um exemplo do perigo de divulgar informações privadas sob o véu do anonimato. Se é da perspectiva de um economista interessado na aprovação da reforma da previdência que escreve Lisboa, para mim é pelo prisma da recente história republicana brasileira que o caso deve ser analisado.
     Bastava que o colunista consultasse os registros da imprensa do período para perceber o sentido da seletividade de sua memória. O chamado Caso EJ guarda de fato grande relação com a crise atual que envolve procuradores como Deltan Dallagnol e outros ligados à operação Lava-Jato, mas não pela divulgação de dados privados. O ponto em comum é, pelo contrário, a exposição do arbítrio dos procuradores, amparados pela impunidade e pelos privilégios que foram a eles garantidos pela Constituição de 1988. Na ocasião, eram os esquecidos Luiz Francisco de Souza e Guilherme Shelb que, ao arrepio da lei e da verdade, promoveram uma intensa campanha de ataques nas quais usavam armas semelhantes àquelas utilizadas pelos procuradores da Lava-Jato: manipulação da opinião pública com a plantação de notícias em off, uso dessas notícias sem base como indícios comprobatórios e parceria com jornalistas de grandes redes de comunicação para garantir a boa recepção de suas acusações.
     O estrago foi, na época, de grandes proporções. Semanas de noticiário intenso sobre o chamado “Caso EJ”, sempre baseado nos testemunhos de procuradores, o transformaram em uma figura pública execrada. Por um lado, a oposição tomou as acusações como provas e usava o caso para pedir o impeachment de Fernando Henrique. Por outro, ninguém do próprio governo do qual ele havia feito parte teve a coragem de sair em sua defesa, que ficou a cargo de familiares e de poucos congressistas mais responsáveis. Mesmo na academia, mais propensa ao pensamento reflexivo, preponderou a postura de manada, que corroborava acriticamente as acusações sem atentar para a falta de evidências que as amparassem. Faltou apenas um juiz como Sergio Moro para que Eduardo Jorge fosse condenado, ainda que inocente.
     Passados alguns anos, as acusações se mostraram totalmente fantasiosas, e o acusado ganhou os processos de reparação que moveu na justiça contra todos os órgãos de imprensa que corroboraram tal campanha. Os próprios procuradores, no entanto, nunca sofreram as consequências de sua atuação irresponsável – sendo alvo apenas de uma leve reprimenda do Conselho Nacional do Ministério Público, que sequer chegou a se efetivar sob a alegação da prescrição. Isso se deve, em grande parte, à falta de definição de instâncias de controle e punição para os membros do MP na Constituição de 1988. Em um momento no qual o país deixava para trás duas décadas de ditadura militar, era compreensível que os constituintes se esforçassem por garantir total liberdade aos procuradores. A essa altura, no entanto, está claro que tal decisão resultou em impunidade e privilégios para uma casta de autoridades públicas que usa tal liberdade para promover perseguições e arbítrios, aos quais todos os partidos e grupos políticos estão sujeitos.
     Já é hora de tomarmos os escândalos alimentados por alguns procuradores irresponsáveis não como simples argumentos para as nossas disputas políticas cotidianas, mas como um dilema da vida republicana do país cujo resultado tem sido a permanente instabilidade de nossa frágil democracia. Se há algum ensinamento do chamado Caso EJ aos dias de hoje, é o da certeza da impunidade de autoridades que atuam ilegalmente. Mostra-se assim imprescindível a definição de instâncias de controle que, sem tolher a liberdade de ação dos membros do MP, possam ao menos responsabiliza-los posteriormente no caso de claras violações à lei e ao Estado de Direito – como as que se verificaram tanto no Caso EJ quanto nos recentes vazamentos da conversa entre os procuradores da Lava-jato. Causa estranheza, por isso, que um autoproclamado liberal como Lisboa confira tão pouco valor à defesa de princípios elementares para a preservação das garantias individuais.

Leonardo Affonso de Miranda Pereira, filho de Eduardo Jorge Caldas, é Professor do Departamento de História da PUC-Rio.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Liberdade de expressão, liberdade acadêmica



            Reina a balbúrdia nas universidades da Bruzundanga. Ou ao menos é o que pensam sobre elas algumas autoridades governamentais. É preciso respeitar a liberdade de expressão. A bronca é livre, assim como a desinformação e a ignorância. Quase toda a pesquisa científica feita no país acontece em universidades particulares. O presidente e seus comandados podem ordenar o fim da sociologia, da filosofia, da astrologia e do que mais houver que lhes der na veneta. Pesquisas mostram que cigarro não faz mal à saúde. O aquecimento global é engodo marxista (Gramsci) para frear o desenvolvimento do capitalismo. O evolucionismo é uma hipótese tão plausível quanto Adão, Eva, o paraíso e a maçã. Nunca houve ditadura na América Latina. Na Bruzundanga, nem ditabranda. A Terra é plana. 
            Ó vida, ó céus, ó azar! Explicar tudo cansa, mas vamos lá, começando pelo começo (sic). Liberdade de expressão e liberdade acadêmica são conceitos diferentes. A segunda depende da primeira, mas é cousa doutro naipe. A liberdade de expressão se exerce no espaço público de forma ampla. É o direito de deitar falação sobre aquilo que se sabe ou não, que se ama ou odeia, sobre aquilo do qual pouco se lhe dá, que se deseja, que dá paúra, e assim por diante. Direito robusto, coqueluche do nosso tempo, defendido com galhardia por todos, mais eficazmente ainda por grandes empresas que exploram certos serviços tecnológicos globais. Algumas democracias do mundo impõem restrições a esse direito nosso de cada dia, para evitar que se berre em alto e bom som o desejo de exterminar outra raça, ou fiéis doutra religião, ou gente de orientação sexual diferente da nossa, etc. Mas a exceção não faz a regra. O que mais vale em democracias é o direito de cada um dizer o que lhe vem à cachola.
            Liberdade acadêmica é o conjunto de condições institucionais que garantem a pesquisadores, professores e estudantes a produção de conhecimento com autonomia e independência –quer dizer, livre da ingerência do Estado e de outros grupos de interesse existentes na sociedade. É um ideal, um objetivo em permanente construção, um direito que se defende no dia a dia das instituições de ensino e pesquisa. A liberdade acadêmica diz respeito a enunciados de conhecimento, à prerrogativa de exprimir livremente o resultado de pesquisas científicas submetidas a critérios de demonstração e prova aceitos pelas comunidades de pesquisadores de cada disciplina, sujeitas à crítica dos pares, aos erros, às correções e acréscimos que estão no centro desse tipo de atividade. Há um mundo de regras e exigências que precisam ser satisfeitas para que se chegue a dizer algo cientificamente relevante. Não se chega lá sem a formação adequada obtida em cursos de graduação, mestrado, doutorado. Sem lidar com as questões feitas por bancas de titulação e de concurso; sem enfrentar o crivo de pareceristas de periódicos especializados, de editoras.
            Como se vê, liberdade de expressão e liberdade acadêmica são cousas muito diversas. As universidades são espaços que, por sua natureza, acolhem e abraçam a livre expressão de ideias. A liberdade de expressão é valor crucial da vida universitária. Todavia, o exercício de tal direito nas universidades não cria prerrogativas que são decorrentes apenas da liberdade acadêmica. Achar que a Terra é plana não ajudará ninguém a se tornar bacharel em geografia. Não há biólogo que derive do criacionismo hipóteses a serem testadas nos laboratórios universitários. Ninguém será aprovado num concurso público a uma cadeira na área de história negando o fato de haverem ocorrido ditaduras militares na América Latina durante a chamada Guerra Fria. E assim por diante. A liberdade de expressão, por si só, não senta nos bancos universitários. O valor central nesses espaços é o conhecimento produzido em ambiente de liberdade acadêmica.
            Os extremismos de direita, mundo afora, ignoram a diferença básica entre liberdade de expressão e liberdade acadêmica. Por malícia ou desconhecimento, o governo da Bruzundanga parece pensar que pode ditar o que se ensinará nas escolas e universidades do país. Não pode. Não passarão. Instituições de ensino e pesquisa são lugares de conhecimento e formação –exigem tempo, paciência, determinação, obedecem a regras e protocolos rigorosos. As universidades públicas brasileiras pertencem à sociedade. Foram construídas em décadas de trabalho por cientistas, professores, estudantes e funcionários. Expandiram-se nos últimos anos. Existem em maior número, estão maiores e melhores. Na medida do possível, tornaram-se mais inclusivas, trouxeram a sociedade para dentro delas. Tem muito a melhorar, como tem de ser, como é da natureza delas. Serão defendidas pela sociedade brasileira. E contarão com ampla e irrestrita solidariedade da comunidade acadêmica internacional.   

Sidney Chalhoub
Professor of History, Harvard University
Professor Titular Colaborador, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

A força da história


            Seria melhor escrever crônica, mas hoje não é possível. Faz dias que abro jornais e revistas e aparece uma saraivada de notícias e artigos de opinião a respeito do que o governo eleito do país pretende fazer na área de Educação. Tramita um projeto de lei no parlamento para instituir a censura em sala de aula, fala-se em fundir o ministério da Educação com outro, em cobrar mensalidades nas universidades públicas, em vouchers etc. Bastante cacofonia, mas não seria razoável descartar de início todos os pontos que aparecem para discussão. Todavia, há alguns esclarecimentos a fazer no que tange à produção do conhecimento histórico e a difusão dele nas instituições de ensino, nos livros, em revistas especializadas, em meios diversos de divulgação. Apesar das aparências (a julgar pelo que se lê e escuta), a produção de conhecimento histórico e o ensino dele não são a casa da mãe Joana. De modo que vou explicar duas ou três cousas básicas, para colocar a conversa em lugar devido.

            Ao que parece, professores e professoras de história são alvos principais de iniciativas para combater uma suposta doutrinação nas escolas. Todo dia há alguma notícia sobre docente de história denunciado, perseguido, demitido, ameaçado, agredido verbalmente, ou pior. É possível que tenha havido um excesso ou outro, em especial devido à alta temperatura política dos últimos meses. Mas a exceção não faz a regra, nem o ataque em curso contra docentes de história precisa de episódios isolados para se justificar. Quais os motivos para tanto foco nos historiadores? Por que eles passaram a incomodar tanto a certos setores da sociedade brasileira e da classe política?

            A resposta é complexa. Seria necessário situá-la no quadro mais amplo de explicações dos motivos pelos quais a extrema direita chegou ao poder no Brasil, neste preciso momento. Conheço meus pares. Nós, historiadores, e colegas cientistas sociais de diversas disciplinas, no Brasil e no mundo, nos debruçaremos sobre o tema nas próximas décadas e vamos dissecar o assunto até que a nuvem espessa da incompreensão se dissipe um pouco, ou bastante. O processo é lento, já começou e não tem hora para acabar. O tempo nervoso da política não tem nada a ver com a longa duração requerida na investigação, no diálogo acadêmico e na sistematização de resultados de pesquisa.

            Por aí se chega a uma primeira resposta quanto aos ataques aos historiadores. Os historiadores brasileiros estão na berlinda porque o conhecimento que produzem hoje é autônomo, crítico, baseado em pesquisas empíricas lentas e sólidas, informado por debates conceituais densos. Além disso, em várias áreas da pesquisa histórica, têm o reconhecimento da comunidade acadêmica internacional. Desde o início da década de 1980, a formação de historiadores se profissionalizou no país de maneira admirável. Há hoje dezenas de cursos de mestrado e doutorado em história espalhados por todas as regiões. São programas de pós-graduação constantemente e rigorosamente avaliados pelos pares, em processos de acompanhamento institucionalizados pelo governo federal que nada deixam a dever (de fato, superam em muitos aspectos) a procedimentos similares existentes em outros países. Vários desses programas são de excelência, muitos deles de ótima qualidade. Via de regra, os professores e professoras de história das universidades brasileiras passaram por um processo de formação exigente, demorado, a demandar doses absurdas de vocação e determinação –quatro anos de graduação, dois ou três anos de mestrado, quatro a seis anos de doutorado. Dez a treze anos de formação, quando dá tudo certo, sem intempéries. Essa qualidade concentrada nas universidades, nas públicas em especial, mas não só nelas, se espraia pelo sistema inteiro, instaura a reflexão crítica sobre a história em toda parte. Isso incomoda demais.

            É fácil entender o desconforto de tanta gente. As historiadoras e historiadores brasileiros passaram as últimas décadas a escarafunchar arquivos e rever inteiramente o que antes se sabia sobre a história da escravidão e do racismo no país. A violência da escravidão, a expansão da cafeicultura baseada na invasão de terras e no tráfico africano ilegal, o estudo das formas de resistência e de enfrentamento cotidiano por mulheres e homens escravizados –tudo isso se pesquisa e aprende, chega às salas de aula e até ajudou na justificativa para a adoção de políticas públicas de ação afirmativa. A historiografia brasileira participou intensamente de um movimento internacional de investigação das relações de gênero e seu impacto na reprodução de desigualdades em sociedades diversas, em qualquer tempo. Aprendemos a respeito dos modos de as mulheres lidarem com as violências e as formas diversas de subordinação, sabemos melhor aquilo que têm feito ao longo da história contra aqueles que pregam a violação delas, a amputação de suas potencialidades, a interdição de seus sonhos. Houve uma gama enorme de estudos sobre a ditadura brasileira de 1964-1985, baseados em fontes primárias que se tornaram disponíveis, produzidos em diálogo com a historiografia internacional a respeito das ditaduras latino-americanas no período da guerra fria. Os historiadores brasileiros sequer inventaram de chamar “ditadura” o que ocorreu no país naquele período, pois historiadores de outras partes do mundo já haviam adotado a bossa de chamar a cousa pelo nome que a cousa tem.

            Nada disso, e muito mais, agrada a quem tem agora as rédeas do poder. Paciência. Outras eleições virão. Mas algo precisa ficar claro. Nenhum político, nenhum general, nenhum juiz, irá determinar como historiadores de ofício chamarão isso ou aquilo, ou como exercerão o seu ofício. Podemos ser calados, mas não vencidos. E estamos à disposição para ensinar, como sempre estivemos, a quem quiser aprender. As portas das universidades brasileiras estão abertas a quem se qualificar para ingressar nelas –há enem, vestibulares, concursos de ingresso para programas de pós-graduação. Depois muitos anos de formação, exames diante de bancas de mestrado, doutorado, tudo com os salamaleques da tradição acadêmica. Há centenas e centenas de livros e artigos científicos sobre os temas citados no parágrafo anterior, e sobre muitos mais. É longo, duro, mas fascinante. Podem crer.


Sidney Chalhoub

Professor of History, Harvard University

Professor Titular Colaborador, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Brás Cubas vota em Bolsonaro. E Machado de Assis?


          Os vermes que roeram as frias carnes do cadáver dele, Brás Cubas, delataram a um juiz de província qual será o voto do ilustre defunto autor no dia 28 de outubro próximo: Bolsonaro! O juiz ouviu o depoimento de Brás e, ato contínuo, certo da importância dessa informação para influenciar eleitores indecisos a respeito do pleito que se aproxima, vazou a transcrição para a imprensa, como de costume. Nela se lê assim:

“Testemunha jurada aos Santos Evangelhos na forma da lei, prometeu dizer a verdade, principalmente a pós-verdade; declarou chamar-se Brás Cubas, memorialista supimpa, profissão vive de rendas, idade duzentos e treze anos; perguntado sobre o pleito eleitoral de domingo próximo, disse que votaria em Jair Bolsonaro, sua alma gêmea; disse mais, que sabia por ouvir dizer que, ao falar de sua esposa, o dito candidato usa repetir o que ele, Brás, disse certa vez de sua amante, Virgília: “era o travesseiro do meu espírito, um travesseiro mole, tépido, aromático, enfronhado em cambraia e bruxelas. Era ali que ele costumava repousar de todas as sensações más, simplesmente enfadonhas, ou até dolorosas. E, bem pesada as cousas, não era outra a razão da existência de Virgília”; também sabe por ouvir dizer que o candidato citado pretende, no governo, colocar em prática a mesma política dele, Brás, em relação aos negros: “Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, --algumas vezes gemendo, --mas obedecia sem dizer palavra”; se disser algo, responder-se-á, “Cala a boca, besta!”; perguntado sobre os direitos das empregadas domésticas, disse a testemunha que o programa do candidato em tela é idêntico ao que adotou enquanto viveu e depois, nos aposentos eternos: foram chamadas ao mundo para “queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia”; perguntado como achava que o candidato deveria lidar com ativistas que se  opuserem ao seu possível futuro governo, disse a testemunha, ruborizado, subindo o tom de voz, que precisam ser mandados ao calabouço, a prisão dos escravos, “donde eles [descerão] a escorrer sangue”; perguntado, por fim, qual o principal ponto de contato entre as filosofias de vida dele, testemunha, e a do candidato Bolsonaro, disse, comovido, que ambos se afeiçoam à “injustiça humana”, gostam de contemplá-la, “atenuá-la”, “explicá-la”, “ao sabor das  circunstâncias e lugares”; e mais não disse nem lhe foi perguntado, com o que o juiz de província mandou-me lavrar este auto, de cuja verdade dou fé (...)”.

Presente ao interrogatório, Machado de Assis permaneceu calado num canto da sala, fingindo que não estava ali. Os vermes o perceberam e lhe fizeram a pergunta fatal: “E o Senhor, Criador desta Criatura, votará em Bolsonaro?”. Machado de Assis gaguejou, não disse que sim, nem disse que não. Diante da insistência dos vermes, respondeu enigmático, a caminho da porta de saída: “É sabido desde a mais remota noute dos tempos que no dia 28 de outubro de 2018 Hércules realizará o seu DÉCIMO-TERCEIRO trabalho. Boas Noutes!”.

 Sidney Chalhoub, 25/10/2018






segunda-feira, 21 de maio de 2018

Uma revolução ruidosa, mas pensada, e que precisa ser continuada


        Foram 4 dias de trabalho puxado e intenso, quase 12 horas por dia, participando do II Seminário Internacional Histórias do Pós-Abolição no Mundo Atlântico. Liderado pelo GT Emancipações e Pós-Abolição, da Anpuh, particularmente pensado e dirigido por um grupo de historiadoras e historiadores negros, dentre os quais alguns bem jovens, doutorados há pouco tempo, ou que ingressaram há pouco nas universidades públicas como professores. Um seminário com chamada pública de trabalhos, e mesas-redondas montadas com critérios de diversidade e representatividade, contrapondo-se ao tradicional e engessado modelo de seminário com “convidados ilustres” (embora tenha aparecido um ou outro com essa postura… urgh). O comitê científico, “gênero-equilibrado”, era de perfil também majoritariamente negro, com ampla representação não só regional, mas também geracional. 27 painéis, com ao menos 4 trabalhos cada, 3 mesas-redondas, além da Iniciação Científica: numa conta rápida umas 140 apresentações. Fico muito agradecida ao destino por ter participado desse seminário. Lá estive em função de uma demanda da direção da Casa Rui que julgava importante que estivéssmos envolvidos na discussão crítica dos 130 anos de abolição. Agradeço enormemente a acolhida de nossa instituição, e reafirmo o que disse na mesa: temos na rua São Clemente muitas coisas preciosas, como um acervo público de documentos, bibliotecas, patrimônio intelectual, mas nos faltam pesquisadores e tecnólogos negros. Numa maratona, movida por extrema sede por aprender mais daquelas experiências, devo ter assitido cerca de 50 pessoas, em diferentes momentos da formação e trajetória, com trabalhos que resultam do que acho que podemos chamar de revolução de paradigmas na produção do conhecimento sobre nós mesmos e nossa história.
            Revolução que não é silenciosa e sim, ruidosa. Mas revolução pensada, gestada com cuidado e atenção, e que agora precisa ser continuada. Se a ponta do iceberg é o ano de 2003, com o início mais sistemático das ações afirmativas em diferentes áreas, a história dessa revolução é bem anterior. Olhando a avalanche que nos assola a todos, e buscando ajudar a segurar os pilares das políticas públicas de investimento em educação e pesquisa, dentre as quais as cotas e a renovação dos currículos, é inevitável lembrar da famosa metáfora do período imperial, Ação/Reação/Transação, mas com outras direções políticas que não a famosa conciliação entre liberais e conservadores. Porque não queremos o liberalismo com escravidão. A Ação que vemos na mudança no perfil dos estudantes e profissionais, nas agendas de pesquisa, para quem já era professor e pesquisador, vem cheia de potência. A Reação é, ao invés de ir na direção oposta, e “parar o carro da revolução” (o que quer que fosse um carro na época do Bernardo Pereira de Vasconcelos), tentar pular pra dentro dele e seguir na luta antirracista. Aprendi que para o GT, diferente do que eu própria tinha imaginado, não se trata só do período pós-abolição, entendido cronologicamente. E que o conceito de “emancipações” busca lidar com experiências e situações de diferentes épocas. Num mesmo painel, o vaqueiro Raimundo, da Balaiada, falando do “povo de cor”, junto com as propostas historiográficas de Beatriz Nascimento, e ainda as trajetórias de Clovis Moura e Eduardo de Oliveira e Oliveira. Trabalhos de iniciação científica feitos com maestria, questões relevantes, e sensibilidade política. Vocês sabiam que após o fim da escravidão, mulheres mães, na região mais rica do Brasil (Vale do Paraíba em SP), eram classificadas pelos juízes (alô poder judiciário, discricionário e elitista, os menines da IC tão de olho em vocês) como “eram escravas de sicrano” ou “pertenciam a fulano” – notem o verbo no passado imperfeito – e se apropriavam de seus filhos, alegando que as mesmas não tinham capacidade ou moralidade para cuidar dos mesmos? E que diante dos argumentos das mães, que entravam em processos judiciais intermináveis, perpetuavam a apropriação? E as diferentes formas e expressões dos associativismos negros, em tempos diferentes, vocês conheciam seu alcance e dimensão? Que a lei que institui o ensino de história e cultura afrobrasileira foi defendida por décadas? Que os portugueses investem uma fortuna para construir um museu interativo sofisticadíssimo, no Porto, onde os visitantes viajam num barco virtual, chegam a uma senzala e encontram por lá … um singelo jogo de capoeira (fiquei chocada, eu sei, sou ingênua demais).  Que o famoso “Padrão dos Descobrimentos” em Lisboa pode abrigar uma exposição chamada Racismo e Cidadania que no fundo só faz enraizar o racismo, pois não discute as pautas reais de quem o enfrenta? E a oposição entre trabalho escravo e trabalho livre, como se mantém, ao considerar que já no século XX, moradores de Sergipe vão trabalhar em enorme fábrica de tecidos na Bahia, em troca de praticamente nada?
            Uma outra questão crucial que volta e meia aparecia, talvez ainda sem uma formulação mais sistemática, mas que acho que é a chave para novas mudanças conceituais, é a relação raça/classe. O fato do seminário ter acontecido no espaço da Fundação Getúlio Vargas foi especialmente significativo para explicitá-la. Um contraste gritante entre os engravatados, brancos, engomados, em corredores aclimatados e atapetados, e a elegância majestosa e colorida que ia para o nono andar. Numa das salas atapetadas e aclimatadas, vi uma caixa de acrílico, lacrada, como uma urna, onde se lia “Avaliação dos Professores”. Os alunos podem submeter ali, aparentemente, o que quiserem. Donde se conclui que a cultura política para o debate e resolução de conflitos pela conversa franca ou num debate aberto é zero.  As jongueiras trouxeram um alento, mostrando outros saberes e usos da palavra. O genocídio dos jovens negros pela polícia (média de 20 assassinatos por semana em Salvador), a violência crescente a que está exposta a comunidade quilombola do Bracuí, violência alimentada pelo consumo de cocaína pelos milionários que vão para suas ilhas, praias particulares e mansões em Angra dos Reis, apontam “A liberdade não ficou do nosso jeito, quero nossa liberdade, cadê nossos direitos?”. É tão desesperador quando buscamos combater o racismo junto com a perspectiva de quem o enfrenta diretamente, que só mesmo uma revolução.
           


Ivana Stolze Lima (Casa Rui Barbosa e PUC-Rio)
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terça-feira, 17 de abril de 2018

Lula, os passados e os futuros da experiência democrática no Brasil

                                                                                   
O ato político que teve lugar na manhã do sábado 7 de abril pode ser visto como um resultado imprevisto de um mandado de prisão expedido às pressas. Com certeza, para muitos, foi um resultado indesejado. Deve ter funcionado como um lembrete ao juiz que o assinou (e a outros agentes públicos) de que suas decisões costumam incidir na realidade de formas que insistem em não corresponder às suas intenções e projetos. Este foi o final provisório de um processo judicial  manchado por arbitrariedades, marcado uma indissimulável perseguição a uma força política específica, e alimentado pelas fantasias de seu banimento total.

            Essas circunstâncias só aumentam a importância da rara manifestação política do sábado 7 de abril. Em frente ao edifício da sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, Lula falou a uma emocionada multidão que lembrava aquelas outras multidões, há quarenta anos atrás. O discurso em que anunciou sua decisão de se apresentar ao juiz para “transferir a responsabilidade” aos que o perseguem, frustrando aqueles que esperavam vê-lo no papel de um réu acuado, se tornou expressão da força do capital político que surpreendentemente continua associado à sua trajetória e ao PT, resistente à longa perseguição midiática e judicial. A presença de presidenciáveis de dois outros partidos políticos de esquerda para apoiá-lo e ser levantados pela sua mão como o futuro da esquerda no Brasil reforça este sentido político.

            Ao se dirigir a este público, Lula fez um balanço de sua aprendizagem política, e com isso, também da experiência da esquerda brasileira nos últimos quarenta anos. Seu ponto de partida foram as greves de 1978-1980, momento em que a afirmação da autonomia e da capacidade histórica da classe trabalhadora brasileira surgiu como um elemento novo aos olhos dos contemporâneos. As greves questionaram o lugar-comum das explicações acadêmicas e políticas daquele momento de que a classe trabalhadora, derrotada pelo golpe de 1964, era débil, vulnerável a cooptações e práticas populistas, e terminava sempre presa do Estado e de partidos políticos. Num momento de desgaste da ditadura militar, os chamados novos movimentos sociais ampliavam o campo da política, conectando-a com a vida cotidiana.

            O surgimento de Lula como liderança sindical no final dos anos 70 marcou o começo de uma estratégia política baseada na construção de uma esquerda democrática no Brasil.  Nas décadas seguintes, o protagonismo do PT foi determinante no período mais longo em que um projeto de esquerda conseguiu ser parte da vida democrática institucional na história do Brasil.

            Em seu discurso do dia 7 de abril, Lula interveio ativamente nos sentidos em disputa daquela história. Uma vez mais, recordou sua experiência como presidente do sindicato durante a ditadura militar brasileira. Cercado de alguns dos principais protagonistas daquela experiência  de organização política, como os padres das comunidades eclesiásticas de base, além dos próprios operários metalúrgicos que se dirigiram ao sindicato ao terminar o turno da tarde, Lula destacou dois eixos de sua formação política: por um lado, os encontros entre intelectuais e operários que marcaram a formação da CUT e do PT; por outro, a aprendizagem da greve.

            O relato se deteve em uma das greves de 1979, na que Lula e a direção sindical, ao avaliar não existir organização suficiente para manter o conflito, não conseguiu convencer suas bases a entrar num acordo com os patrões da indústria automobilística, “o melhor possível”, em sua opinião: era 15% de aumento, sem perder férias nem o 13o salário. Terminaram pagando o preço de passar um ano sendo vistos como pelegos pelos operários. No ano seguinte, a decisão da greve seguiu a vontade da base: a nova paralisação foi sustentada por uma “densa trama relacional” construída nos bairros, nas assembleias e nas igrejas, e expressado em piquetes, que de resto não eram tão diferentes aos que existiram antes de 1964. (ver Paulo Fontes e Francisco Macedo, “Piquetes como repertório: organização operária e redes sociais nas greves de 1957 e 1980”, Topoi, 18, 34, 2017). Derrotada depois de 41 penosos dias de luta, que incluíram a primeira prisão de Lula, a greve terminou sendo vitoriosa, já que permitiu construir a organização posterior. A analogia era dirigida à multidão que não o queria preso pela segunda vez: a prisão seria mais uma pequena derrota; um passo para construir a luta futura.

            Para além dessa intenção política imediata, a reavaliação de Lula dos ensinamentos da derrota de 1980 expõe um velho dilema que ganha atualidade e urgência: frente a um poder judiciário que se deixa amedrontar por ameaças militares de outros tipos e que não hesita em rasgar princípios constitucionais que sustentaram a estabilidade deste último período, como continuar apostando pela política democrática?      
      
Quando o discurso do moralismo anticorrupção tende a diminuir cada vez mais o lugar da política e ajuda a criar as condições para a violência fascista na vida cotidiana brasileira, Lula ratifica suas convicções de que  o PT “não nasceu para ser um partido revolucionário, nasceu para ser um partido democrático e levar a democracia às suas últimas consequências”. (A verdade vencerá, ebook, Ed. Boitempo, 2018)

            Historiadores são gente treinada para desconfiar das analogias históricas, que correm o risco de se tornar unívocas e simplificar processos que merecem ser analisados em seus matizes e complexidades. O PT de 2018 e Lula, aos 72 anos, estão muito distantes daquela experiência política que deslanchou em 1980. O caminho iniciado pela luta pela democracia e os direitos dos trabalhadores nos levou muito mais longe do que aqueles metalúrgicos/as e sociólogos/as que os acompanhavam jamais se atreveram a sonhar. Mas o ato do 7 de abril mostrou que a força e as dificuldades dessa experiência política da esquerda merecem ser entendidas, de forma rigorosa, sem concessões e sem condescendência, à luz da história peculiar de um dos países mais desiguais do planeta. Seria possível analisar também a derrota de uma prática de alternância democrática à luz daquela experiência e dessa aprendizagem?

            Uma resposta que reponha a velha oposição entre uma postura revolucionária e uma esquerda morna e negociadora, por exemplo, não condiz com a riqueza dessa experiência histórica. Ela não dá conta de descrever o que há de novo numa figura política que conseguiu se construir como o “único  mediador entre elite e massas”, o único que conseguiu reuni-las, por um tempo, em torno de um só projeto político, nas precisas palavras do sociólogo Leonardo Avritzer, (“A prisão do único mediador entre elites e massas no Brasil”, GGN, 06/04/2018).

    A trajetória de Lula, e suas próprias reflexões sobre ela, nos dá pistas para propor periodizações da construção de um campo de esquerda no último período democrático brasileiro. Ela terá que contemplar a combinação entre a afirmação da autonomia e da capacidade política da classe trabalhadora brasileira, terá que passar pela aposta da política democrática institucional, ponderando suas consequências, limites e conflitos. Em 2018, sua prisão e a ameaça de um candidato presidencial identificado com a extrema direita e com a ação de milícias paramilitares abrem um novo período de indeterminação. Por enquanto, podemos  ir tirando algumas lições de tudo isso. Entre elas, a de que as experiências históricas não deixam de informar e iluminar as futuras lutas de formas que sempre nos surpreendem, independente do que vemos, e do que não queremos ver.
Cristiana Schettini (CONICET/ IDAES-UNSAM)