O primeiro aniversário da derrota da
seleção brasileira no jogo contra a Alemanha nos fez revisitar um trauma
recente. Além de levar os jornais a publicar a opinião de ex-jogadores,
técnicos e jornalistas sobre as causas do desastre, a data fez com que algumas
redes de televisão voltassem a exibir a partida. Como historiador, dificilmente
eu poderia ter algo a dizer em um debate pautado pela discussão sobre técnicas,
táticas ou lógicas de gestão esportiva. A experiência de assistir novamente à
partida sem a emoção do momento me fez ver, porém, que esse caso era diferente.
Para além dos fatores elencados à exaustão por aqueles efetivamente envolvidos
com o futebol na atualidade, uma das principais explicações para aquele resultado
está no peso da história.
Como qualquer torcedor sabe,
história não ganha jogo. Um dos encantos do futebol está em contemplar a falta
de lógica, que nos permite torcer para que um time como o Bangu possa vencer o
Barcelona. Ainda assim, na Copa do Mundo de 2014 a seleção brasileira carregava
o fardo da longa história de afirmação do jogo no Brasil, iniciada ainda nos
últimos anos do século XIX. Por caminhos diversos, trilhados tanto pelos jovens
que traziam de seus estudos na Europa o material para a prática do novo jogo quanto
pelos marinheiros e estivadores anônimos que o praticavam ao seu modo nas
regiões portuárias, o gosto pelo futebol rapidamente se espalhou entre diferentes
grupos sociais. Se de início ele era apenas mais um dos muitos esportes de
origem inglesa que se afirmavam nas cidades brasileiras, a década de 1910 já se
notava a clara primazia do futebol sobre os demais no gosto do público.
Nos primeiros anos era como aprendizes que os brasileiros se colocavam
frente aos times de outros países. “Nós perdemos porque era impossível deixar
de perder”, escrevia João do Rio em 1908 depois de uma contundente derrota de
um selecionado brasileiro frente ao argentino, pois a “noção helênica” do jogo
dos adversários, herança da forte presença europeia na região do Rio da Prata,
bastaria para explicar o resultado. Aos poucos, porém, o sucesso esportivo de
jovens negros e pardos que fizeram do futebol um poderoso meio de ascensão
social viria a mudar tais certezas. Ao conquistar nos campos um espaço que
lutavam para alcançar na vida, esses jogadores afrodescendentes conseguiram com
o tempo se fazer presentes em times antes restritos aos brancos. Como
resultado, no início da década de 1930 eles já figuravam nos até então elitizados
selecionados nacionais, que se abriam para jogadores como Leônidas da Silva e
Domingos da Guia.
Foi a partir do sucesso desses jogadores que se afirmou, na Copa do
Mundo de 1938, a imagem do “estilo
brasileiro de jogar futebol, que arredonda e às vezes adoça o jogo inventado
pelos ingleses”, nas palavras escritas naquele ano por Gilberto Freyre. Capaz
de misturar harmonicamente a ginga e malemolência naturalmente atribuída aos
afrodescendentes com a força e disciplina dos europeus, este estilo se tornaria
uma das bases da afirmação de uma nova identidade para a nação, e um dos
principais fatores do orgulho nacional.
A força dessa imagem, construída como resposta aos dilemas de uma
sociedade marcada por desigualdades de diferentes naturezas, resultou em uma
certeza poucas vezes questionada desde então: a da inequívoca superioridade dos
brasileiros nos campos. Em 1938, quando ainda não existia a transmissão
televisiva dos jogos, esta certeza fez com que os brasileiros atribuíssem a
derrota para a Itália a um evidente roubo do juiz, embora ninguém pudesse
enxerga-lo. Na Copa do Mundo seguinte, em 1950, o insucesso foi atribuído à
falha individual de um jogador. Daí em diante, as marcantes vitórias do
selecionado brasileiro em outras disputas só viriam a reafirmar esta certeza,
que faria com que todas as eliminações seguintes fossem justificadas por
fatores extraordinários – como farras boêmias patrocinadas pelos jogadores, um
pênalti perdido por quem não costumava perdê-lo ou até mesmo fantasiosos
esquemas de manipulação de resultados por parte de grandes multinacionais de
material esportivo. Em condições normais, era claro que a vitória deveria ser brasileira.
Era o peso desta história que todo o Brasil carregava no momento em que
se realizava novamente aqui uma Copa do Mundo. Ele se manifesta
diariamente em muitas das tragédias nacionais encobertas pelo mito construído
nos campos – como o racismo negado por aqueles que acreditam na força
homogeneizadora de nossa identidade mestiça ou a enorme desigualdade encoberta
por esta afirmação harmoniosa de uma sociedade sem conflitos. Na partida
disputada no Mineirão naquele 8 de julho, no entanto, a fragilidade desta
imagem se mostrou de maneira palpável. Jogando de igual para igual contra os
alemães até sofrer o primeiro gol, o time brasileiro a sentiu frente à ameaça
de uma derrota em casa que certamente teria culpados. Paralisados, pareciam contar com
a força de uma camisa que bastaria para conquistar as vitórias, como sugerido
recentemente pela CBF em uma rede social. Por mais que tenham razão todos que
clamam pela reformulação das categorias de base do futebol brasileiro e pela necessidade
de renovação técnica e tática, a humilhante derrota parece ter também relação
com o peso desta ilusão – que estava naquele dia nas mãos de Júlio Cesar, nas
pernas de David Luiz, nos pés de Fred e na cabeça de milhões de brasileiros.
Leonardo Pereira (PUC-Rio)
Leonardo Pereira (PUC-Rio)