sexta-feira, 10 de julho de 2015

7 a 1: o peso da história

            O primeiro aniversário da derrota da seleção brasileira no jogo contra a Alemanha nos fez revisitar um trauma recente. Além de levar os jornais a publicar a opinião de ex-jogadores, técnicos e jornalistas sobre as causas do desastre, a data fez com que algumas redes de televisão voltassem a exibir a partida. Como historiador, dificilmente eu poderia ter algo a dizer em um debate pautado pela discussão sobre técnicas, táticas ou lógicas de gestão esportiva. A experiência de assistir novamente à partida sem a emoção do momento me fez ver, porém, que esse caso era diferente. Para além dos fatores elencados à exaustão por aqueles efetivamente envolvidos com o futebol na atualidade, uma das principais explicações para aquele resultado está no peso da história.
            Como qualquer torcedor sabe, história não ganha jogo. Um dos encantos do futebol está em contemplar a falta de lógica, que nos permite torcer para que um time como o Bangu possa vencer o Barcelona. Ainda assim, na Copa do Mundo de 2014 a seleção brasileira carregava o fardo da longa história de afirmação do jogo no Brasil, iniciada ainda nos últimos anos do século XIX. Por caminhos diversos, trilhados tanto pelos jovens que traziam de seus estudos na Europa o material para a prática do novo jogo quanto pelos marinheiros e estivadores anônimos que o praticavam ao seu modo nas regiões portuárias, o gosto pelo futebol rapidamente se espalhou entre diferentes grupos sociais. Se de início ele era apenas mais um dos muitos esportes de origem inglesa que se afirmavam nas cidades brasileiras, a década de 1910 já se notava a clara primazia do futebol sobre os demais no gosto do público.
Nos primeiros anos era como aprendizes que os brasileiros se colocavam frente aos times de outros países. “Nós perdemos porque era impossível deixar de perder”, escrevia João do Rio em 1908 depois de uma contundente derrota de um selecionado brasileiro frente ao argentino, pois a “noção helênica” do jogo dos adversários, herança da forte presença europeia na região do Rio da Prata, bastaria para explicar o resultado. Aos poucos, porém, o sucesso esportivo de jovens negros e pardos que fizeram do futebol um poderoso meio de ascensão social viria a mudar tais certezas. Ao conquistar nos campos um espaço que lutavam para alcançar na vida, esses jogadores afrodescendentes conseguiram com o tempo se fazer presentes em times antes restritos aos brancos. Como resultado, no início da década de 1930 eles já figuravam nos até então elitizados selecionados nacionais, que se abriam para jogadores como Leônidas da Silva e Domingos da Guia.
Foi a partir do sucesso desses jogadores que se afirmou, na Copa do Mundo de 1938, a imagem do “estilo brasileiro de jogar futebol, que arredonda e às vezes adoça o jogo inventado pelos ingleses”, nas palavras escritas naquele ano por Gilberto Freyre. Capaz de misturar harmonicamente a ginga e malemolência naturalmente atribuída aos afrodescendentes com a força e disciplina dos europeus, este estilo se tornaria uma das bases da afirmação de uma nova identidade para a nação, e um dos principais fatores do orgulho nacional.
A força dessa imagem, construída como resposta aos dilemas de uma sociedade marcada por desigualdades de diferentes naturezas, resultou em uma certeza poucas vezes questionada desde então: a da inequívoca superioridade dos brasileiros nos campos. Em 1938, quando ainda não existia a transmissão televisiva dos jogos, esta certeza fez com que os brasileiros atribuíssem a derrota para a Itália a um evidente roubo do juiz, embora ninguém pudesse enxerga-lo. Na Copa do Mundo seguinte, em 1950, o insucesso foi atribuído à falha individual de um jogador. Daí em diante, as marcantes vitórias do selecionado brasileiro em outras disputas só viriam a reafirmar esta certeza, que faria com que todas as eliminações seguintes fossem justificadas por fatores extraordinários – como farras boêmias patrocinadas pelos jogadores, um pênalti perdido por quem não costumava perdê-lo ou até mesmo fantasiosos esquemas de manipulação de resultados por parte de grandes multinacionais de material esportivo. Em condições normais, era claro que a vitória deveria ser brasileira.
Era o peso desta história que todo o Brasil carregava no momento em que se realizava novamente aqui uma Copa do Mundo. Ele se manifesta diariamente em muitas das tragédias nacionais encobertas pelo mito construído nos campos – como o racismo negado por aqueles que acreditam na força homogeneizadora de nossa identidade mestiça ou a enorme desigualdade encoberta por esta afirmação harmoniosa de uma sociedade sem conflitos. Na partida disputada no Mineirão naquele 8 de julho, no entanto, a fragilidade desta imagem se mostrou de maneira palpável. Jogando de igual para igual contra os alemães até sofrer o primeiro gol, o time brasileiro a sentiu frente à ameaça de uma derrota em casa que certamente teria culpados. Paralisados, pareciam contar com a força de uma camisa que bastaria para conquistar as vitórias, como sugerido recentemente pela CBF em uma rede social. Por mais que tenham razão todos que clamam pela reformulação das categorias de base do futebol brasileiro e pela necessidade de renovação técnica e tática, a humilhante derrota parece ter também relação com o peso desta ilusão – que estava naquele dia nas mãos de Júlio Cesar, nas pernas de David Luiz, nos pés de Fred e na cabeça de milhões de brasileiros. 

                                                                                                         Leonardo Pereira (PUC-Rio)