sábado, 31 de dezembro de 2016

Ari, Arivaldo, meu pai


Paulo Fontes (Departamento de História da UFRJ)

As disputas de Roosevelt com a Suprema Corte Americana, a polarização política que mergulharia a Espanha numa sangrenta guerra civil, a escalada de leis e medidas repressivas na Alemanha nazista, as lutas de Gandhi pela independência da Índia, nada disso, nenhuma dessas notícias, nem mesmo o estado de sítio decretado por Getulio Vargas meses antes, eram dignos de atenção ou interesse no humilde lar no interior de Sergipe. Naquele dia 15 de fevereiro de 1936, toda energia e expectativas de seu Zeca e, principalmente, de Dona Afra, estavam concentradas no nascimento de mais um rebento da família, já bem numerosa, do casal de agricultores. Nascia Arivaldo de Brito Fontes, desde logo alcunhado carinhosamente como Ari.

O menino nasceu saudável e forte. Seu olhar expressivo e sorriso maroto seriam marcas por toda a vida. Como para todos por ali, o trabalho começou cedo, na roça. Mas, o mundo não tardaria a chegar para o pequeno Ari. Dentre suas lembranças de garoto, ele sempre recordaria a banda do coreto da praça principal de Campos do Rio Real (então, recém renomeada como Tobias Barreto por um decreto de Vargas em homenagem ao ilustre intelectual local) tocando músicas de Louis Armstrong e Glenn Muller. Lembraria também do mapa da Europa pintado no chão da mesma praça, enquanto o rádio transmitia notícias da tomada da Normandia pelos Aliados e do avanço das tropas soviéticas em direção a Berlim, em meio aos apupos e vivas dos locais.

Arivaldo também não tardaria a partir para o mundo. Seguindo os passos de milhares e milhares de migrantes nordestinos, mas mais especificamente dos seus irmãos mais velhos, Ari chegou ao Rio de Janeiro em meados dos anos 50. No futuro, São Paulo seria seu amor (com seu orgulhoso e apurado senso de direção e localização, conheceria a cidade como poucos), mas o Rio nunca deixaria de ser sua paixão.

Irmão mais novo, ainda adolescente, foi amparado por uma extensa rede familiar e de conterraneidade. Talvez por isso tenha escapado ao duro trabalho na construção civil, “estágio probatório” da imensa maioria dos nortistas nas grandes cidades do Sul. Acabou operário na indústria têxtil. Meses depois, indicado por um amigo, logo foi labutar como auxiliar de alfaiate no centro do Rio. Aprendeu o básico do ofício e, décadas depois, em sua casa, pequenos ajustes e a barra das calças das crianças seriam sempre carinhosamente feitos por ele.

A alfaiataria fazia uniformes para a Aeronáutica. A proximidade certamente facilitou a entrada do jovem, em idade de prestar o serviço militar, naquela força. Não quis mais sair. O traje lustroso e os olhares das moças embeveciam o vaidoso rapaz. Mas principalmente, a estabilidade do soldo constante e as possibilidades de estudo e ascensão davam a importante sensação que estava vencendo rápido na vida. E, além disso, havia os aviões e as viagens, que cada vez mais faziam a sua cabeça. Lotado no Correio Aéreo Nacional, conheceu os quatro cantos do Brasil e vários países vizinhos. Animou-se a estudar e formou-se sargento em Guaratinguetá.   

            Mas a potencial carreira militar seria interrompida. A noite carioca chamava o jovem Arivaldo. Bem falante, namorador e com uma imensa facilidade de fazer amigos, desbravava com furor os bares e bilhares de uma Lapa decadente, mas ainda cheia de encantos. Por lá, conviveu, entre tantos outros, com Dercy Gonçalves, Pixinguinha e Nelson Gonçalves, de quem para sempre seria um ardoroso fã. Um sério acidente durante o serviço se somaria às dificuldades com a disciplina da Força Aérea. Ari acabaria reformado precocemente e pilotar aviões passou a ser um sonho acalentado de uma vida paralela que nunca chegaria a existir.

            A pensão que passou a ganhar da Aeronáutica não era muita, mas permitia a sobrevivência e até viagens para Tobias Barreto e Aracaju. Numa dessas viagens, apaixonou-se. Lourdinha, a bela moça, tímida e religiosa, tinha apenas 17 anos e estava prestes a se mudar da capital sergipana para o Rio de Janeiro, onde iria estudar e trabalhar, morando com a irmã mais velha. Conhecer as variadas atrações da Cidade Maravilhosa foi uma vantagem estratégica para o insistente e galanteador Arivaldo.

Em meio às turbulências dos anos rebeldes, viveriam um namoro de anos dourados. Passeios de lambreta, nascer do sol em Copacabana, jogos do Vasco no Maracanã, excursões a Paquetá. Muitos amigos e amigas. Alguns cariocas. A maioria, conterrâneos, aos quais os locais em tom jocoso, chamavam de “paraíbas”. Ari estava imerso numa rede informal de sociabilidades e auxílio mútuo dos “paraíbas”. E eram essas relações que o ajudavam a achar bicos que complementavam a renda para além da pensão.

O longo namoro com Lourdinha virou casamento e Ari decidiu arriscar a sorte como taxista. Os tempos eram duros e o negócio não deu certo. Com poucas perspectivas e um recém nascido de 3 meses, o casal acabou decidindo partir para São Paulo, cidade em que tinham parentes e onde todos diziam haver maiores e melhores oportunidades. Deixar o Rio e suportar o frio (chegaram em meio à garoa de julho) e a sisudez de primeira hora dos paulistanos não foi tarefa fácil. Foi em São Paulo, no entanto, que Arivaldo conseguiu estabilidade e construiu, de fato, uma família. Mesmo com saudades da longínqua Tobias e de um Rio romântico, a Paulicéia seria, para sempre, o seu lar.

Depois de penar alguns meses entre o desemprego e a função de vendedor numa pequena loja de sapatos, a oportunidade, enfim, apareceu. Os estudos dos tempos de Aeronáutica possibilitavam almejar um trabalho de escritório.  Um conhecido o indicou e Ari arrumou um emprego num escritório de contabilidade no centro da cidade. O “milagre” econômico da ditadura impulsionava a economia e uma enxurrada de novas leis, como a do FGTS, mudava o cenário das relações trabalhistas. No pulsante setor de construção civil  uma leva de pequenos empreiteiros, mestre de obras e pedreiros especializados precisavam de alguém que cuidasse de suas contas e da burocracia com o “pessoal.” Arivaldo virou esse cara. Sagaz, mas simples e educado no trato, conseguia ótimo trânsito do engenheiro “metido a besta” até o peão “rústico” recém-chegado do Nordeste.

A homérica viagem no Fusca, com a mulher e filhos (naquele momento dois meninos e uma menina. Outra menina ainda chegaria) para visitar a terra natal era uma inegável demonstração de “sucesso”.  De fato, pegando carona no turbilhão de algumas obras do Brasil Grande – metrô em São Paulo, rodovia Imigrantes, silos no Norte do Paraná – o agora Seu Ari dava assistência a um número crescente de pequenos construtores. Com a ajuda de alguns, ousou largar a condição de empregado e, no final dos anos 1970, abrir seu próprio escritório. Para dar conta, decidiu fazer, às noites, um curso de contabilidade.

As coisas pareciam prosperar. Lourdinha, seguindo a modernidade feminina de então, tirou carta de motorista. O Fusca pode ser trocado por um Opala usado e depois, por uma espaçosa Caravan. Com o apartamento financiado na Vila Mariana e as (ainda) boas escolas públicas da região, a família tinha uma decente vida de classe média baixa, sonhando em alguns momentos em tornar-se classe média de verdade.

O pequeno escritório de dois ambientes da Rua Senador Feijó era o castelo de Arivaldo e o centro da cidade seu espaço de ação. Para as crianças, era uma enorme diversão ir ao trabalho do papai e almoçar na cidade. Mais tarde, os dois filhos homens trabalhariam ali em algum momento como office-boys. Da janela de seu escritório assistiu, entre desconfiado, temeroso e orgulhoso, um dos seus filhos, ainda adolescente, se politizar durante a Campanha das Diretas. Mas, seu castelo também guardava seus segredos e os vestígios de uma, na maior parte do tempo, moderada vida boêmia que ele não deixava de manter.

De qualquer forma, Arivaldo procurava encarnar a figura do pai  provedor e rígido. Para tanto cultivava um peculiar bom humor ranzinza, frequentemente ironizado dentro de casa.  Mas, na verdade, Ari era um pai carinhoso e sensível. Como a maioria dos pais, teve mais facilidade em lidar com a infância do que com a adolescência dos filhos. Adorava brincar e passear com seus meninos e meninas. Os domingos pela manhã eram sagrados. Ibirapuera, parques de Interlagos ou as costumeiras visitas aos amigos e parentes, especialmente em Guarulhos e São Miguel.

  Educação, para ele, era fundamental. Junto com sua mulher, inculcou nos filhos o valor dos estudos. Com isso não havia trégua. De longe, seu maior orgulho na vida foi ter formado os quatro filhos. Os netos e netas de analfabetos se tornariam um professor universitário, um advogado e duas médicas. Sem os esforços descomunais do casal, o empenho particular de Lourdinha e a atenção e apoio de Ari isso jamais teria sido possível. Quando, por exemplo, percebeu no filho mais velho um gosto particular pela leitura, Ari não mediu esforços e recursos para comprar uma dispendiosa e quilométrica enciclopédia que tomava toda estante da sala. Encheu a casa de obras clássicas compradas no “círculo do livro” e nas coleções em fascículos de banca de jornal.  Em outro filho estimulou ao máximo sua vocação musical.



            Ser humano é ser complexo e contraditório. O filho, adolescente,  jamais entenderia como Ari muitas vezes votava na esquerda, mas criticava os direitos humanos “para bandidos” e apreciava programas de TV policialescos e sensacionalistas. Nunca compreenderia exatamente como se coadunava um autêntico orgulho das origens e um forte nacionalismo (invariavelmente expresso nos esportes que  curtia,  principalmente o futebol, o vôlei e o boxe, mas também o automobilismo) com um certo “complexo de vira latas”, que colocava brasileiros e latino-americanos sempre para baixo em relação aos norte-americanos e europeus.

Gostava do Silvio Santos e ao mesmo tempo adorava a rádio Cultura dedicada à música clássica. Chopin e Tchaikovsky eram suas predileções. E revelavam uma inusitada admiração pelo Leste Europeu. Divertia-se inventando uma ascendência polonesa para a família. O Brito do seu nome seria uma corruptela de um impronunciável sobrenome polaco. E o “Blauth” que colocou como nome complementar do segundo filho era atribuído a uma homenagem a um suposto bom jogador da seleção polonesa que vira jogar anos antes.

            Arivaldo amava, sobretudo, a vida e as pessoas. Prezava sobremaneira as amizades e a importância da lealdade. Para ele delações nunca poderiam ser premiadas. Era um ser da vida social. Curtia levar os amigos para diferentes lugares e mostrar novidades. Sua preocupação com o outro era sempre genuína e emocionada. Gostava de feiras e mercados. Generoso, não era incomum que fizesse uma boa “feira” e desse de presente numa visita surpresa para algum amigo ou parente necessitado.

            A crise econômica dos anos 1980 e as reformas neoliberais dos anos 1990 afetaram profundamente o mundo da construção que Arivaldo conheceu. Boa parte do que sabia fazer estava obsoleto e seu escritório-castelo entrou numa longa, lenta e definitiva decadência. De certa forma, foi sua decadência também. Com os filhos criados e com seus próprios rumos, a necessidade de recursos e de foco parecia menor. Então, em 2003, os excessos alimentares e etílicos, a negligência com a saúde e a ausência de exercícios físicos cobraram um preço muito caro. Arivaldo teve dois AVCs seguidos e só não morreu porque a mulher e a filha médica foram particularmente rápidas no socorro.

            Sobreviveu, mas nunca mais foi o mesmo. Com metade do corpo paralisado, passou a depender completamente dos cuidados da mulher. Lourdinha aposentou-se e passou a se dedicar com carinho e afinco ao amor de sua vida. Lúcido, Ari nunca se conformou completamente em ter no seu corpo uma prisão.  Apesar disso, teve momentos de muita felicidade. Foi uma alegria a chegada dos  netos,  que em 2016, seriam sete.  Também foi um momento especial a viagem de toda família para um Réveillon em Sergipe, com direito a uma excursão a Tobias Barreto e um emocionante almoço com os seis irmãos e irmãs de Ari àquela altura remanescentes.

            A coisa mais fantástica de ser historiador social é descobrir e estudar a importância das pessoas comuns na história. Como muitos já destacaram, 2016 foi um ano marcado pela morte. Neste ano, tão duro e difícil, tivemos a perda de dezenas de celebridades e figuras importantes. Algumas como Leonard Cohen, Mohamad Ali, Fidel Castro e Dom Paulo Evaristo Arns, de minha particular admiração.  Mas para mim, 2016 também foi o ano da vida. Em dose dupla. Leon e Miguel, tais como as flores no asfalto de que nos falava o poeta Drummond, chegaram trazendo imensa alegria no presente e uma inabalável esperança no futuro. Tivemos a felicidade de ver um encontro de Ari com os netos. Eles saberão que, num golpe do ciclo da vida, eu fui pai e perdi o pai no mesmo ano. Mas, certamente crescerão sabendo o quão incomum e extraordinário foi Arivaldo, esse homem comum. Descanse em paz, papai!


Após complicações derivadas de uma pneumonia, Arivaldo de Brito Fontes faleceu no dia 30 de dezembro às 19h20, cercado do amor e carinho de sua mulher, filhos, genros, nora e netos.

Paulo Fontes é historiador social do trabalho, professor do CPDOC/ FGV.