segunda-feira, 14 de setembro de 2015

A história que é pública


            O Vale do Paraíba e o tempo presente: a produção de história pública na formação do grande público sobre a escravidão no Brasil, significou bem mais que uma dissertação para o curso de mestrado. Significou realizar o movimento de olhar para a produção de história de forma diferente do que eu, em particular, havia olhado até então. Digo isso, porque ao longo da minha trajetória acadêmica, o meu entendimento sobre produção de história esteve sempre direcionado às produções historiográficas, aos estudos e reflexões realizados por acadêmicos renomados, aos trabalhos de pesquisa, entre outros. Tudo isso, sem dúvda, tem seu valor, mérito e importância, afinal, a história é uma ciência, que não deve, no entanto, estar direcionada somente aos seus pares, tão pouco restrita a um espaço. Deve estar em circulação, em debate com os diferentes públicos e nos mais variados lugares. Caso contrário, para que nos serviria a história? Portanto, o diálogo entre a história pública e a história acadêmica deve não apenas existir, mas coexistir.
Com frequência, os debates historiográficos sobre história pública se esforçam em delimitar significados e discutir de que forma tais trabalhos podem contribuir para a formação histórica de grupos e indivíduos, bem como delimitar o papel do historiador nesse processo. Para Sara Albieri, historiadora da USP, tornar a história pública é o mesmo que tornar irrestrito o acesso ao conhecimento sobre fatos e contextos históricos, ou seja, é possibilitar o entendimento sobre os diferentes fatos e contextos históricos contribuindo para que grupos e indivíduos cada vez mais tenham consciência de si no mundo e para o mundo. Há de se pensar a história pública como uma ferramenta capaz de estimular mudanças político-sociais, como um mecanismo que possibilita a grupos e indivíduos problematizarem o mundo em que vivem e influenciarem na construção de um aparato legislativo mais justo e menos desigual, por exemplo. O racismo institucionalizado e refletido em ações políticas como a redução da maioridade penal; as frágeis políticas de habitação que atingem diretamente a população negra, entre outros, são exemplos que mostram a urgência em sensibilizar a consciência histórica do grande público através de trabalhos interessados em apresentar contextos traumáticos, como o da escravidão, de forma problematizada e como um passado ainda presente.
Todas essas questões estiveram presentes ao longo da pesquisa para o mestrado, que buscou analisar os discursos referentes à escravidão construídos no tempo presente por guias e proprietários de fazendas localizadas no Vale do Paraíba fluminense. Através das visitas guiadas, os turistas têm acesso à narrativas orais e visuais, que buscam contar o passado histórico cafeeiro no qual as propriedades estiveram inseridas. Ao longo de mais de um ano de pesquisa, tive contato com as visitas guiadas das fazendas Ponte Alta, Taquara e Arvoredo, em Barra do Piraí/RJ, Florença, em Conservatória/RJ, e São Luís da Boa Sorte, em Vassouras/RJ, além de conversas e entrevistas com proprietários, pesquisadores e guias turísticos da região. O turismo histórico cultural se tornou cenário para as visitas guiadas e contribuiu para a movimentação da economia na região, além de possibilitar custear parte dos gastos com a manutenção dessas propriedades. Mas não só isso. O turismo histórico contribuiu para que essas fazendas tivessem no tempo presente uma função, a de explorar o passado histórico do Vale e fazer com que este circule entre a sociedade.
As narrativas apresentadas pelo conjunto de fazendas são variadas, embora a ideia de um passado cafeeiro opulente e grandioso esteja presente em cada discurso. Alguns proprietários estimam pela participação de pesquisadores e historiadores na organização de visitas e saraus; outros se restringem a contratação de guias turísticos para organizar a atividade e recepcionar os visitantes. Independente disso, o interessante é que em todas as visitas guiadas a consulta a documentos, pesquisadores e historiadores foi mencionada como uma prática para a construção das narrativas. E o que se discute aqui não é a polêmica da veracidade disso, mas o fato de que a história e o historiador aparecem como legitimadores de trabalhos voltados para o grande público. Foi interessante também notar as representações que são feitas sobre a escravidão, o africano e seus descendentes. O Restaurante da Senzala, administrado pela fazenda Taquara, explora com intensidade um passado de escravidão servil ao recepcionar os clientes com garçons e garçonetes negras, vestidas de branco, no espaço da antiga senzala doméstica, no subsolo. Lindas pratarias, decoração aconchegante, confortáveis mobílias, comidas deliciosas. Muito requinte e conforto como nos tempos do barão, familiares, convidados e escravarias. Mas, quais os efeitos em representar a gente negra, nos dias de hoje, a partir das mazelas de um passado tão recente e muito presente, como o da escravidão?
            O cuidado com as representações, sobretudo, no que diz respeito a sujeitos e contextos ligados a passados traumáticos como o da escravidão é mais que necessário. Deve ser ponto de partida para a produção de qualquer trabalho que pretenda de fato contribuir para a formação histórica da sociedade. Ao longo do tempo, muitos discursos foram construídos, sobretudo no âmbito da histórica pública, com base na exibição da violência como característica principal do período escravista, o que contribuiu para a formação de uma cultura histórica acerca da escravidão e dos africanos quase que incapaz de apontar o protagonismo dos negros e as diferentes formas de resistência e relações que foram construídas dentro do sistema escravocrata. Não levanto a bandeira da omissão e do silenciamento da violência física e moral produzida pela escravidão, mas defendo a ideia de que cada vez mais a história pública, seja ela produzida dentro ou fora da escola, esteja interessada e fortemente preocupada em desconstruir estereótipos e colaborar para a formação de uma consciência histórica problematizada e, sem dúvida, estreitar os laços entre o que é produzido dentro e fora da academia é uma ação viabilizadora desse processo.
            Essa é uma problemática que nos convida a refletir sobre os usos da história pública e seus efeitos na formação da consciência histórica do grande público e, nesse sentido, atividades como as visitas guiadas, exposições em museus, documentários, teatro, desfiles de escola de samba, entre outras, assumem a responsabilidade de influenciar e contribuírem na construção de saberes sobre o passado histórico e na reflexão crítica sobre o presente. Há de se pensar sobre os agentes que atuam na produção de história pública e como atuam; quais os temas que estão sendo divulgados e de que forma essa divulgação ocorre. Isso não quer dizer que a história pública estará necessariamente sob monopólio de historiadores, tão pouco estará restrita a escolha de temáticas, mas é fundamental que o trabalho com o grande público tenha para além de qualidade, responsabilidade histórica.
            A história pública também tem seu papel como uma porta de entrada, nos dias de hoje, para a divulgação das pesquisas científicas e os entraves enfrentados por profissionais da área pelo reconhecimento da legitimidade daquilo que produzem. As críticas quase sempre estão pautadas na alegação de que aquilo que é produzido fora da academia, em geral, não está necessariamente preocupado em agregar qualidade, talvez porque muitos cursos de graduação e pós-graduação no país ainda estejam dialogando pouco com este campo. O debate em torno dos diferentes campos de atuação do historiador é importante e bastante atual. Primeiro, porque essa é uma discussão que reforça a necessidade de refletir sobre a função social da carreira de historiador, ou seja, pensar sobre o seu papel na sociedade dos dias de hoje. Este papel social está ligado, principalmente, a um alargamento dos campos de atuação do profissional da história, o que com frequência não ocorre em função de uma desvalorização curricular que se atribui aos trabalhos com a história pública e com a educação básica. Os próprios cursos de graduação incentivam muito pouco essa reflexão e pouco estimulam os graduandos a compreenderem a importância de agregar os saberes científicos com o que é produzido para o grande público e para estudantes escolares. Segundo, porque o campo do turismo histórico cultural vem crescendo com força ao longo do tempo e cada vez mais com o propósito de organizar eventos e atividades culturais cujas narrativas tragam informações e contextos que tenham embasamento. A atuação do historiador, nesse sentido, dará teor científico ao que está sendo produzido para o grande público e trará contribuições para a problematização das representações sobre o passado histórico.
            Com frequência, estudos e trabalhos voltados para a trajetória de africanos escravizados no país se multiplicam, o que evidencia uma crescente preocupação, nacional e internacional, com a divulgação da história e da memória de homens e mulheres mantidos aqui como escravos desde o período colonial. A historiografia sobre o tema vem crescendo bastante, e desde a década de 1980, se inclina fortemente nos debates em torno do protagonismo dos escravizados e na reflexão da dinâmica do sistema escravocrata no Brasil. Cada vez mais, os estudos acadêmicos ligados à escravidão analisam a experiência africana para além do trabalho e açoitamento, para além da submissão e coisificação do indivíduo, com o intuito de divulgar o sistema escravista a partir de sua complexidade e múltiplas facetas. Eu, enquanto historiadora, acredito que esse deve ser um movimento coeso entre as ambas as formas de produzir história. O diálogo deve ser simultâneo e os investimentos cada vez mais intensos. Afinal, de que adianta produzir história se não for para interferir nos diferentes “mundos”, nos diversos espaços, nas diversas concepções e olhares?

Caroline Reis,
Mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio.