quinta-feira, 20 de junho de 2019

Do Caso EJ à Lava-jato

     Em artigo publicado na Folha de São Paulo do último dia 16 de junho, o economista Marcos Lisboa critica a divulgação de conversas entre os procuradores e o juiz Sergio Moro feita pelo site The Intercept. Para ilustrar seu argumento, usa o exemplo de Eduardo Jorge Caldas, ex-ministro do governo Fernando Henrique que foi alvo no ano 2000 de uma maciça campanha de acusações capitaneadas pelo Ministério Público e encampadas pela imprensa. Seria, para ele, um exemplo do perigo de divulgar informações privadas sob o véu do anonimato. Se é da perspectiva de um economista interessado na aprovação da reforma da previdência que escreve Lisboa, para mim é pelo prisma da recente história republicana brasileira que o caso deve ser analisado.
     Bastava que o colunista consultasse os registros da imprensa do período para perceber o sentido da seletividade de sua memória. O chamado Caso EJ guarda de fato grande relação com a crise atual que envolve procuradores como Deltan Dallagnol e outros ligados à operação Lava-Jato, mas não pela divulgação de dados privados. O ponto em comum é, pelo contrário, a exposição do arbítrio dos procuradores, amparados pela impunidade e pelos privilégios que foram a eles garantidos pela Constituição de 1988. Na ocasião, eram os esquecidos Luiz Francisco de Souza e Guilherme Shelb que, ao arrepio da lei e da verdade, promoveram uma intensa campanha de ataques nas quais usavam armas semelhantes àquelas utilizadas pelos procuradores da Lava-Jato: manipulação da opinião pública com a plantação de notícias em off, uso dessas notícias sem base como indícios comprobatórios e parceria com jornalistas de grandes redes de comunicação para garantir a boa recepção de suas acusações.
     O estrago foi, na época, de grandes proporções. Semanas de noticiário intenso sobre o chamado “Caso EJ”, sempre baseado nos testemunhos de procuradores, o transformaram em uma figura pública execrada. Por um lado, a oposição tomou as acusações como provas e usava o caso para pedir o impeachment de Fernando Henrique. Por outro, ninguém do próprio governo do qual ele havia feito parte teve a coragem de sair em sua defesa, que ficou a cargo de familiares e de poucos congressistas mais responsáveis. Mesmo na academia, mais propensa ao pensamento reflexivo, preponderou a postura de manada, que corroborava acriticamente as acusações sem atentar para a falta de evidências que as amparassem. Faltou apenas um juiz como Sergio Moro para que Eduardo Jorge fosse condenado, ainda que inocente.
     Passados alguns anos, as acusações se mostraram totalmente fantasiosas, e o acusado ganhou os processos de reparação que moveu na justiça contra todos os órgãos de imprensa que corroboraram tal campanha. Os próprios procuradores, no entanto, nunca sofreram as consequências de sua atuação irresponsável – sendo alvo apenas de uma leve reprimenda do Conselho Nacional do Ministério Público, que sequer chegou a se efetivar sob a alegação da prescrição. Isso se deve, em grande parte, à falta de definição de instâncias de controle e punição para os membros do MP na Constituição de 1988. Em um momento no qual o país deixava para trás duas décadas de ditadura militar, era compreensível que os constituintes se esforçassem por garantir total liberdade aos procuradores. A essa altura, no entanto, está claro que tal decisão resultou em impunidade e privilégios para uma casta de autoridades públicas que usa tal liberdade para promover perseguições e arbítrios, aos quais todos os partidos e grupos políticos estão sujeitos.
     Já é hora de tomarmos os escândalos alimentados por alguns procuradores irresponsáveis não como simples argumentos para as nossas disputas políticas cotidianas, mas como um dilema da vida republicana do país cujo resultado tem sido a permanente instabilidade de nossa frágil democracia. Se há algum ensinamento do chamado Caso EJ aos dias de hoje, é o da certeza da impunidade de autoridades que atuam ilegalmente. Mostra-se assim imprescindível a definição de instâncias de controle que, sem tolher a liberdade de ação dos membros do MP, possam ao menos responsabiliza-los posteriormente no caso de claras violações à lei e ao Estado de Direito – como as que se verificaram tanto no Caso EJ quanto nos recentes vazamentos da conversa entre os procuradores da Lava-jato. Causa estranheza, por isso, que um autoproclamado liberal como Lisboa confira tão pouco valor à defesa de princípios elementares para a preservação das garantias individuais.

Leonardo Affonso de Miranda Pereira, filho de Eduardo Jorge Caldas, é Professor do Departamento de História da PUC-Rio.