sábado, 31 de dezembro de 2016

Ari, Arivaldo, meu pai


Paulo Fontes (Departamento de História da UFRJ)

As disputas de Roosevelt com a Suprema Corte Americana, a polarização política que mergulharia a Espanha numa sangrenta guerra civil, a escalada de leis e medidas repressivas na Alemanha nazista, as lutas de Gandhi pela independência da Índia, nada disso, nenhuma dessas notícias, nem mesmo o estado de sítio decretado por Getulio Vargas meses antes, eram dignos de atenção ou interesse no humilde lar no interior de Sergipe. Naquele dia 15 de fevereiro de 1936, toda energia e expectativas de seu Zeca e, principalmente, de Dona Afra, estavam concentradas no nascimento de mais um rebento da família, já bem numerosa, do casal de agricultores. Nascia Arivaldo de Brito Fontes, desde logo alcunhado carinhosamente como Ari.

O menino nasceu saudável e forte. Seu olhar expressivo e sorriso maroto seriam marcas por toda a vida. Como para todos por ali, o trabalho começou cedo, na roça. Mas, o mundo não tardaria a chegar para o pequeno Ari. Dentre suas lembranças de garoto, ele sempre recordaria a banda do coreto da praça principal de Campos do Rio Real (então, recém renomeada como Tobias Barreto por um decreto de Vargas em homenagem ao ilustre intelectual local) tocando músicas de Louis Armstrong e Glenn Muller. Lembraria também do mapa da Europa pintado no chão da mesma praça, enquanto o rádio transmitia notícias da tomada da Normandia pelos Aliados e do avanço das tropas soviéticas em direção a Berlim, em meio aos apupos e vivas dos locais.

Arivaldo também não tardaria a partir para o mundo. Seguindo os passos de milhares e milhares de migrantes nordestinos, mas mais especificamente dos seus irmãos mais velhos, Ari chegou ao Rio de Janeiro em meados dos anos 50. No futuro, São Paulo seria seu amor (com seu orgulhoso e apurado senso de direção e localização, conheceria a cidade como poucos), mas o Rio nunca deixaria de ser sua paixão.

Irmão mais novo, ainda adolescente, foi amparado por uma extensa rede familiar e de conterraneidade. Talvez por isso tenha escapado ao duro trabalho na construção civil, “estágio probatório” da imensa maioria dos nortistas nas grandes cidades do Sul. Acabou operário na indústria têxtil. Meses depois, indicado por um amigo, logo foi labutar como auxiliar de alfaiate no centro do Rio. Aprendeu o básico do ofício e, décadas depois, em sua casa, pequenos ajustes e a barra das calças das crianças seriam sempre carinhosamente feitos por ele.

A alfaiataria fazia uniformes para a Aeronáutica. A proximidade certamente facilitou a entrada do jovem, em idade de prestar o serviço militar, naquela força. Não quis mais sair. O traje lustroso e os olhares das moças embeveciam o vaidoso rapaz. Mas principalmente, a estabilidade do soldo constante e as possibilidades de estudo e ascensão davam a importante sensação que estava vencendo rápido na vida. E, além disso, havia os aviões e as viagens, que cada vez mais faziam a sua cabeça. Lotado no Correio Aéreo Nacional, conheceu os quatro cantos do Brasil e vários países vizinhos. Animou-se a estudar e formou-se sargento em Guaratinguetá.   

            Mas a potencial carreira militar seria interrompida. A noite carioca chamava o jovem Arivaldo. Bem falante, namorador e com uma imensa facilidade de fazer amigos, desbravava com furor os bares e bilhares de uma Lapa decadente, mas ainda cheia de encantos. Por lá, conviveu, entre tantos outros, com Dercy Gonçalves, Pixinguinha e Nelson Gonçalves, de quem para sempre seria um ardoroso fã. Um sério acidente durante o serviço se somaria às dificuldades com a disciplina da Força Aérea. Ari acabaria reformado precocemente e pilotar aviões passou a ser um sonho acalentado de uma vida paralela que nunca chegaria a existir.

            A pensão que passou a ganhar da Aeronáutica não era muita, mas permitia a sobrevivência e até viagens para Tobias Barreto e Aracaju. Numa dessas viagens, apaixonou-se. Lourdinha, a bela moça, tímida e religiosa, tinha apenas 17 anos e estava prestes a se mudar da capital sergipana para o Rio de Janeiro, onde iria estudar e trabalhar, morando com a irmã mais velha. Conhecer as variadas atrações da Cidade Maravilhosa foi uma vantagem estratégica para o insistente e galanteador Arivaldo.

Em meio às turbulências dos anos rebeldes, viveriam um namoro de anos dourados. Passeios de lambreta, nascer do sol em Copacabana, jogos do Vasco no Maracanã, excursões a Paquetá. Muitos amigos e amigas. Alguns cariocas. A maioria, conterrâneos, aos quais os locais em tom jocoso, chamavam de “paraíbas”. Ari estava imerso numa rede informal de sociabilidades e auxílio mútuo dos “paraíbas”. E eram essas relações que o ajudavam a achar bicos que complementavam a renda para além da pensão.

O longo namoro com Lourdinha virou casamento e Ari decidiu arriscar a sorte como taxista. Os tempos eram duros e o negócio não deu certo. Com poucas perspectivas e um recém nascido de 3 meses, o casal acabou decidindo partir para São Paulo, cidade em que tinham parentes e onde todos diziam haver maiores e melhores oportunidades. Deixar o Rio e suportar o frio (chegaram em meio à garoa de julho) e a sisudez de primeira hora dos paulistanos não foi tarefa fácil. Foi em São Paulo, no entanto, que Arivaldo conseguiu estabilidade e construiu, de fato, uma família. Mesmo com saudades da longínqua Tobias e de um Rio romântico, a Paulicéia seria, para sempre, o seu lar.

Depois de penar alguns meses entre o desemprego e a função de vendedor numa pequena loja de sapatos, a oportunidade, enfim, apareceu. Os estudos dos tempos de Aeronáutica possibilitavam almejar um trabalho de escritório.  Um conhecido o indicou e Ari arrumou um emprego num escritório de contabilidade no centro da cidade. O “milagre” econômico da ditadura impulsionava a economia e uma enxurrada de novas leis, como a do FGTS, mudava o cenário das relações trabalhistas. No pulsante setor de construção civil  uma leva de pequenos empreiteiros, mestre de obras e pedreiros especializados precisavam de alguém que cuidasse de suas contas e da burocracia com o “pessoal.” Arivaldo virou esse cara. Sagaz, mas simples e educado no trato, conseguia ótimo trânsito do engenheiro “metido a besta” até o peão “rústico” recém-chegado do Nordeste.

A homérica viagem no Fusca, com a mulher e filhos (naquele momento dois meninos e uma menina. Outra menina ainda chegaria) para visitar a terra natal era uma inegável demonstração de “sucesso”.  De fato, pegando carona no turbilhão de algumas obras do Brasil Grande – metrô em São Paulo, rodovia Imigrantes, silos no Norte do Paraná – o agora Seu Ari dava assistência a um número crescente de pequenos construtores. Com a ajuda de alguns, ousou largar a condição de empregado e, no final dos anos 1970, abrir seu próprio escritório. Para dar conta, decidiu fazer, às noites, um curso de contabilidade.

As coisas pareciam prosperar. Lourdinha, seguindo a modernidade feminina de então, tirou carta de motorista. O Fusca pode ser trocado por um Opala usado e depois, por uma espaçosa Caravan. Com o apartamento financiado na Vila Mariana e as (ainda) boas escolas públicas da região, a família tinha uma decente vida de classe média baixa, sonhando em alguns momentos em tornar-se classe média de verdade.

O pequeno escritório de dois ambientes da Rua Senador Feijó era o castelo de Arivaldo e o centro da cidade seu espaço de ação. Para as crianças, era uma enorme diversão ir ao trabalho do papai e almoçar na cidade. Mais tarde, os dois filhos homens trabalhariam ali em algum momento como office-boys. Da janela de seu escritório assistiu, entre desconfiado, temeroso e orgulhoso, um dos seus filhos, ainda adolescente, se politizar durante a Campanha das Diretas. Mas, seu castelo também guardava seus segredos e os vestígios de uma, na maior parte do tempo, moderada vida boêmia que ele não deixava de manter.

De qualquer forma, Arivaldo procurava encarnar a figura do pai  provedor e rígido. Para tanto cultivava um peculiar bom humor ranzinza, frequentemente ironizado dentro de casa.  Mas, na verdade, Ari era um pai carinhoso e sensível. Como a maioria dos pais, teve mais facilidade em lidar com a infância do que com a adolescência dos filhos. Adorava brincar e passear com seus meninos e meninas. Os domingos pela manhã eram sagrados. Ibirapuera, parques de Interlagos ou as costumeiras visitas aos amigos e parentes, especialmente em Guarulhos e São Miguel.

  Educação, para ele, era fundamental. Junto com sua mulher, inculcou nos filhos o valor dos estudos. Com isso não havia trégua. De longe, seu maior orgulho na vida foi ter formado os quatro filhos. Os netos e netas de analfabetos se tornariam um professor universitário, um advogado e duas médicas. Sem os esforços descomunais do casal, o empenho particular de Lourdinha e a atenção e apoio de Ari isso jamais teria sido possível. Quando, por exemplo, percebeu no filho mais velho um gosto particular pela leitura, Ari não mediu esforços e recursos para comprar uma dispendiosa e quilométrica enciclopédia que tomava toda estante da sala. Encheu a casa de obras clássicas compradas no “círculo do livro” e nas coleções em fascículos de banca de jornal.  Em outro filho estimulou ao máximo sua vocação musical.



            Ser humano é ser complexo e contraditório. O filho, adolescente,  jamais entenderia como Ari muitas vezes votava na esquerda, mas criticava os direitos humanos “para bandidos” e apreciava programas de TV policialescos e sensacionalistas. Nunca compreenderia exatamente como se coadunava um autêntico orgulho das origens e um forte nacionalismo (invariavelmente expresso nos esportes que  curtia,  principalmente o futebol, o vôlei e o boxe, mas também o automobilismo) com um certo “complexo de vira latas”, que colocava brasileiros e latino-americanos sempre para baixo em relação aos norte-americanos e europeus.

Gostava do Silvio Santos e ao mesmo tempo adorava a rádio Cultura dedicada à música clássica. Chopin e Tchaikovsky eram suas predileções. E revelavam uma inusitada admiração pelo Leste Europeu. Divertia-se inventando uma ascendência polonesa para a família. O Brito do seu nome seria uma corruptela de um impronunciável sobrenome polaco. E o “Blauth” que colocou como nome complementar do segundo filho era atribuído a uma homenagem a um suposto bom jogador da seleção polonesa que vira jogar anos antes.

            Arivaldo amava, sobretudo, a vida e as pessoas. Prezava sobremaneira as amizades e a importância da lealdade. Para ele delações nunca poderiam ser premiadas. Era um ser da vida social. Curtia levar os amigos para diferentes lugares e mostrar novidades. Sua preocupação com o outro era sempre genuína e emocionada. Gostava de feiras e mercados. Generoso, não era incomum que fizesse uma boa “feira” e desse de presente numa visita surpresa para algum amigo ou parente necessitado.

            A crise econômica dos anos 1980 e as reformas neoliberais dos anos 1990 afetaram profundamente o mundo da construção que Arivaldo conheceu. Boa parte do que sabia fazer estava obsoleto e seu escritório-castelo entrou numa longa, lenta e definitiva decadência. De certa forma, foi sua decadência também. Com os filhos criados e com seus próprios rumos, a necessidade de recursos e de foco parecia menor. Então, em 2003, os excessos alimentares e etílicos, a negligência com a saúde e a ausência de exercícios físicos cobraram um preço muito caro. Arivaldo teve dois AVCs seguidos e só não morreu porque a mulher e a filha médica foram particularmente rápidas no socorro.

            Sobreviveu, mas nunca mais foi o mesmo. Com metade do corpo paralisado, passou a depender completamente dos cuidados da mulher. Lourdinha aposentou-se e passou a se dedicar com carinho e afinco ao amor de sua vida. Lúcido, Ari nunca se conformou completamente em ter no seu corpo uma prisão.  Apesar disso, teve momentos de muita felicidade. Foi uma alegria a chegada dos  netos,  que em 2016, seriam sete.  Também foi um momento especial a viagem de toda família para um Réveillon em Sergipe, com direito a uma excursão a Tobias Barreto e um emocionante almoço com os seis irmãos e irmãs de Ari àquela altura remanescentes.

            A coisa mais fantástica de ser historiador social é descobrir e estudar a importância das pessoas comuns na história. Como muitos já destacaram, 2016 foi um ano marcado pela morte. Neste ano, tão duro e difícil, tivemos a perda de dezenas de celebridades e figuras importantes. Algumas como Leonard Cohen, Mohamad Ali, Fidel Castro e Dom Paulo Evaristo Arns, de minha particular admiração.  Mas para mim, 2016 também foi o ano da vida. Em dose dupla. Leon e Miguel, tais como as flores no asfalto de que nos falava o poeta Drummond, chegaram trazendo imensa alegria no presente e uma inabalável esperança no futuro. Tivemos a felicidade de ver um encontro de Ari com os netos. Eles saberão que, num golpe do ciclo da vida, eu fui pai e perdi o pai no mesmo ano. Mas, certamente crescerão sabendo o quão incomum e extraordinário foi Arivaldo, esse homem comum. Descanse em paz, papai!


Após complicações derivadas de uma pneumonia, Arivaldo de Brito Fontes faleceu no dia 30 de dezembro às 19h20, cercado do amor e carinho de sua mulher, filhos, genros, nora e netos.

Paulo Fontes é historiador social do trabalho, professor do CPDOC/ FGV.


domingo, 27 de novembro de 2016

O axé da sala de aula


Ivana Stolze Lima (Fundação Casa de Rui Barbosa/ PUC-Rio)

Nos últimos dias me envolvi com a preparação para participar da mesa Religiosidade Afro-Brasileira e o Ensino de História, no Seminário ProfHistória Ensino de História da África, da cultura afro-brasileira e indígena na Unirio. É um mestrado profissional que funciona em rede nacional, que vem movimentando a pós-graduação dita acadêmica e, mais amplamente, vem movimentando a própria área de História. Passei várias horas lendo ansiosamente o máximo que podia de 3 dissertações fascinantes.
            O trabalho de Isabelle de Lacerda Nascentes Coelho, intitulado O Axé na Sala de Aula: abordando as religiões afro-brasileiras no Ensino de História (UFRRJ, 2016) (como percebem, subverti o seu título para esse relato), propõe uma preciosa "ferramenta" (ajô!) de papel e ideias, materializada em pranchas ilustradas para ensinar a filosofia, mitologia e epistemologia das religiões afro através da apresentação dos orixás, seus atributos, histórias e façanhas.
            O primeiro a abrir a roda, como não poderia deixar de ser, é Exu/Eleguá/Bará  e sua bela jogada de mestre pregando uma peça a pretensos donos da verdade. Disfarçado em um homem desconhecido, portando um barrete de duas cores, Exu passa por dois lavradores que desprezaram oferendas que lhe deviam ter feito. Até então amigos, passam a discutir sobre a cor do barrete do desconhecido. "É branco, com certeza", diz um deles, convencido que sua parcialidade é a única. "Vermelho, o mais vermelho possível", diz o outro. Acusações mútuas de cegos e mentirosos se sucedem, levando à briga e morte dos teimosos, incapazes de ouvir o outro e de pôr suas próprias visões de mundo em perspectiva.
            Quem conhece a história da escravidão e em especial as políticas senhoriais em relação às culturas africanas no Brasil, sabe que a tolerância nada mais foi que um estratégia de controle. O binômio repressão/tolerância foi usado em diferentes gradientes por delegados, juizes, senhores, feitores. O axé "deu uma volta" nessa lógica. O trabalho de Isabelle propõe ir além da chave da tolerância para propor uma ética da alteridade na sua sala de aula em Itaguaí. Esse trecho dá bem uma ideia da importância de seu trabalho para o desenvolvimento de subjetividades das crianças e jovens com que lida: "As atividades envolvendo narrativa mítica e recriação artística dos deuses do panteão afro-brasileiro através de desenho, foram de longe, as mais populares com a turma. Os momentos de debate, compartilhamento de ideias também foi bastante produtivo. No decorrer das discussões começaram a emergir desabafos, confidências, compartilhamento de memórias e experiências vividas com relação a diversas formas de preconceito e intolerância, não apenas ligadas ao tema afro-religioso. Este foi um momento importante de catarse coletiva e de fortalecimento dos vínculos de solidariedade, afetividade e empatia. Mesmo sendo bastante jovens, os estudantes se mostraram capazes de exercitar a autorreflexão e enfrentar seus próprios preconceitos." (p. 64)
            Os trabalhos dessas professoras/historiadoras tornam-se ainda mais relevantes e urgentes quando se considera as condições em que são gestados. Jessika Rezende Souza, autora de Entre a cruz e o terreiro: uma análise em torno da integração entre a religiosidade afro-brasileira e o ensino de história no Museu do Negro (UFRJ, 2016) diz que na escola onde trabalha teria sido questionada e desqualificada a abordagem do candomblé como não sendo tema de uma aula de história. Ooi??? Como assim não é tema da história? Em quase todas as disciplinas na minha atuação como professora de história do Brasil na graduação (e agora também na pós) esse tema se impõe, e olha que não deve ser só por eu ser filha de Ogun, mas por ser historiadora que preza um entendimento  complexo dos processos históricos. O trabalho de Jessika propõe uma visita cuidadosa e sensível ao Museu do Negro, sediado na Igreja do Rosário, abrindo assim a integração desse lugar de memória como uma forma de semear o conhecimento histórico em seus alunos. Jessika cutuca o currículo engessado e folclorizante, buscando as organizações negras, questionando a velha imagem da democracia racial e reclamando mais do que o "dever de memória", o "direito à história".
            Carolina Barcellos Ferreira traz um relato muito detalhado do que pode significar trabalhar com as "coisas de macumba" na sua prática de ensino em São Gonçalo. Ela e alguns colegas professores, cansados da eterna e inquestionada comemoração da Páscoa, promovem regularmente atividades para que os alunos sob sua responsabilidade saibam que o mundo é maior do que parece, com práticas que assegurem a expressão da diversidade religiosa. Em seu "Isso é coisa de macumba?" Elaboração de um material pedagógico de História sobre as religiosidades afro-brasileiras em museus do Rio de Janeiro (UERJ, 2016) , ela conta uma história muito tocante. Em visita ao Museu Histórico Nacional, diante do Templo de Oxalá, uma aluna não se conteve de medo e saiu correndo, conjurando o ato com um "cruz credo". Essa dura experiência poderia ter paralizado Carolina. Mas ela fez disso um tema de dissertação, construindo um projeto de observação de objetos religiosos em diferentes museus da cidade. Ela discute como e porquê cada objeto selecionado chegou ao museu, ajudando a entendê-los como parte da história a ser discutida. Em espaços tão diversos como no Museu da Maré, o Museu Nacional, e sua sala de aula, Carolina pacientemente busca mostrar que o mundo tem vários lados e perspectivas. Ao fazer isso, tanto libera os alunos que têm vergonha e medo de seguirem suas crenças afro-brasileiras como sobretudo talvez evite alguns futuros intolerantes. Todos os trabalhos do mestrado profissional em Ensino de História procuraram oferecer materiais a serem usados por outros professores, no formato de livros, jogos, videos, material eletrônico e outros. O de Carolina é um livro impresso onde disponibiliza um roteiro crítico e atividades para as visitas aos museus.
            Eu não poderia falar que em algum momento tive dificuldade em trabalhar com o candomblé nos meus cursos de história do Brasil. Talvez seja bom esclarecer, para quem não conhece a PUC-Rio, que ensinando lá há 23 anos nunca, absolutamente nunca, vi minha autonomia docente ser questionada e, formando professores de história e historiadores, além de sociológos, e meninos de outras formações, espero ter conseguido mostrar os conceitos que me fazem selecionar tal tema nos meus programas. Além de ser um grande tema para discutir os escravizados como sujeitos históricos, a presença das culturas africanas no Brasil, a superação da lógica da dominação pela da negociação e conflito, a história do candomblé mostra o conceito importantíssimo que é o de associação, a possibilidade de recriar espaços comunitários, de imprimir neles memórias reconstruídas, de pertencimento e de articulação política. Também acho que eu não devo isso apenas às leituras cuidadosas dos documentos, livros etc. Mas muito mais ao fato de ter sido acolhida no Ilê Omolu Oxum pela minha mãe, Ialorixá Meninazinha d'Oxum, lindo exemplo de história de vida, e por todos os outros pais e mães, e também meus filhos e filhas, irmãos e irmãs. Olorun Modupé.
            Afinal, agradeço às novas mestres por provarem mais uma vez que o axé da sala de aula está entre nós.

domingo, 6 de novembro de 2016

Justiça e violência na Bruzundanga

                                                                        Sidney Chalhoub (UNICAMP/ Harvard University)

            Ó vida, ó céus, ó azar... A Bruzundanga não dá sossego às historiadoras do futuro. Passaram a semana perplexas com um artigo assinado por dois procuradores da Lava-Jato, um deles ás no powerpoint, no qual se diz que "o debate" sobre as investigações de corrupção "transcendeu o meio jurídico e, para nossa sorte [deles, procuradores], ganhou o gosto popular" (grifo meu). Cáspite, como assim? O que tem a ver investigação judicial com "gosto popular"?
            Confusas, mas sempre intrigadas com aquela sociedade desaparecida havia milênios, as historiadoras foram aos alfarrábios de praxe, quer dizer, às obras completas de Machado de Assis, o grande clássico de sociologia bruzundanguense. Quincas Borba, capítulo XLVII. Rubião vinha ladeira abaixo, a pensar na bela Sofia, quiçá a vislumbrar em si mesmo os primeiros sinais de insanidade. Ao se acomodar no tílburi, lembrou de um episódio que presenciara na juventude, que decerto lhe marcara fundo o espírito. Agora, num momento de transe mental, caído por Sofia, preocupado com a reação dela aos seus avanços, a cena de outrora reapareceu inteira à sua frente. Uma das historiadoras exclamou de repente: "A cena do enforcamento! É isso! Toni Morrisson, Playing in the Dark. Lembram?" Ninguém entendeu nada.
            As historiadoras leram juntas e meditaram sobre a passagem seguinte, de Quincas Borba. Rubião vinha andando sempre, até que "Na esquina da rua dos Ourives deteve-o um ajuntamento de pessoas, e um préstito singular. Um homem, judicialmente trajado, lia em voz alta um papel, a sentença. Havia mais o juiz, um padre, soldados, curiosos. Mas, as principais figuras eram dous pretos. Um deles, mediano, magro, tinha as mãos atadas, os olhos baixos, a cor fula, e levava uma corda enlaçada no pescoço; as pontas do baraço iam nas mãos de outro preto. Este outro olhava para a frente e tinha a cor fixa e retinta. Sustentava com galhardia a curiosidade pública. Lido o papel, o préstito seguiu...". Rubião ficou "impressionado", dividido entre duas "forças íntimas" --uma que lhe mandava seguir caminho, outra "que fosse ver enforcar o preto". Rubião "fechou os olhos, e deixou-se ir ao acaso". O tal acaso fez com que seguisse o préstito, pensando todavia que não queria ver a execução. Queria ver só "a marcha do réu, a cara do carrasco, as cerimônias...". De vez em quando o préstito parava, gente se apinhava às portas e janelas, o oficial de justiça relia a sentença. Os muitos curiosos conversavam sobre o crime, diziam que o assassino era "homem frio e feroz". Sem dar por si, Rubião se encontrava em meio à "multidão compacta", no largo do Moura, o local da execução. Tentou voltar, mas cada um de seus pés foi para um lado. O réu subiu à forca, uma onda de tremor pegou a turba toda, Rubião sem entender "que mãos de ferro lhe pegavam da alma e a retinham ali". Seguiu-se o instante fatal: "o réu esperneou, contraiu-se, o algoz cavalgou-o de um modo airoso e destro; passou pela multidão um rumor grande, Rubião deu um grito, e não viu mais nada".
            O que, de fato, vira Rubião? Por que, num momento de transe, sua mente o levara de volta a esse episódio da juventude? Rubião descia da casa de Palha e Sofia no início da década de 1870. O narrador informa que ele presenciara o episódio do enforcamento quando ainda era muito jovem. É razoável supor que o acontecimento lembrado ocorrera nalgum momento da década de 1840. Leitores e leitoras do século XIX apreciariam a passagem suprindo algumas informações que as historiadoras futuras da Bruzundanga aprenderam com muita pesquisa e alguma imaginação. Assim, tanto o condenado quanto o carrasco eram escravos, forçados ambos a participar da "cerimônia". Além disso, o réu fora condenado no âmbito da lei de exceção de junho de 1835, aprovada após insurreições escravas em Minas Gerais e na Bahia, que abreviara os trâmites legais para o julgamento pelo júri e a execução, sem direito a recurso, dos escravos acusados de atentar contra a vida de seus senhores, familiares e feitores.
            Rubião vira um enforcamento que se fizera cicatriz na alma, algo que nunca compreenderia, mas que se tornaria ferida de novo, conforme ele próprio passara a circular nas altas rodas senhoriais da Corte. Ele vira a encenação da justiça como afirmação do poder e da violência do domínio escravocrata, em espetáculo público, na economia regrada da punição exemplar, destinada a inspirar terror por meio do jeito solene em que a violência máxima --o assassinato por parte do Estado- se oferecia à curiosidade popular. Era a execução da lei. Outras cousas ficavam submersas. Réu e carrasco, mui provavelmente cativos, o eram numa época em que centenas de milhares de africanos chegavam ao país por contrabando, para serem reduzidos à escravidão ilegalmente nas fazendas de café das províncias do Rio de Janeiro e, em seguida, de São Paulo. Exemplo de corrupção sistêmica no bojo mesmo da formação do Estado nacional. A cafeicultura, ou o centro-sul do país, reforçava a sua vocação de metrópole, de poder colonial interiorizado a sugar e exaurir a força de trabalho de africanos contrabandeados e demais escravizados comprados às províncias do norte e nordeste do país. Rubião viu um enforcamento e intuiu um dos sentidos mais profundos da história bruzundanguense.
            Corta, disse uma das historiadoras, como se percebesse que precisava despertar as companheiras da introspecção provocada pela leitura da passagem de Machado de Assis. "2016, ano do impichamento", disse ela, segurando entre os dedos um papel amarelecido e craquelê que encontrara no restolho do acervo de um obscuro historiador da Bruzundanga, cujo nome se perdera na noite dos tempos. Era a transcrição de trecho duma entrevista de Jurema Werneck, médica, ativista do movimento negro, feminista. As palavras eram de uma lucidez cortante; a ledora as pronunciava de um jeito calmo, pausado, como se não fosse possível lê-las doutro modo.
            Jurema dizia "que a Lava Jato é complexa porque está, acredito que está, pegando criminoso. Acredito também que está usando meios ilegais". Referia-se em seguida às "pessoas que tem que ficar na cadeia (...) até confessar, até fazer uma delação premiada. Isso é um absurdo". Prosseguiu assim: "eu queria dizer que essa experiência (...) não é inovação. (...)De onde eu vim isso é todo dia, não é? Todo mundo está dizendo que não tem democracia no Brasil, que isso é uma ditadura. Isso era o que a gente dizia. (...) O nosso discurso [agora] está na rua, na boca dos outros [risos]. A gente disse que era assim mesmo, a polícia é assim, o juiz é assim, não é? Os partidos são assim, os brancos são assim. Porque são assim. Só que agora estão estendendo [esses procedimentos] aos brancos do PT, que é menos branco (...) porque é PT. Eles são menos brancos que os outros brancos. (...) Eles são menos brancos que os outros porque são do PT. (...) Deve ser tudo nordestino, na cabeça do reacionário, é tudo nordestino, então é menos branco. Então estão tratando esses brancos como nos tratam", mas a nossa "democracia" sempre foi essa.
            Silêncio profundo no recinto da entrevista, anotou o historiador. À margem, talvez porque fosse chegado a uma tirada retórica, rabiscou que Jurema "deixara exposto o ventre da história bruzundanguense". Nesse ponto, as historiadoras reviraram os olhos, entre condescendentes e compreensivas. De qualquer modo, acharam que havia ali uma hipótese sugestiva a respeito daquilo que unia Rubião e os procuradores, algo que os fazia andar às escuras (playing in the dark...).

            As historiadoras ainda não descobriram até quando continuou o tribunal de exceção high tech chamado Lava-Jato. Querem acreditar que prosseguiu até que todos os corruptos fossem punidos. Porém a investigação deixou de cativar o "gosto popular" depois que juízes e procuradores foram obrigados a se comportar segundo as responsabilidades de suas funções, tornando-se sérios ao ponto de a mídia corporativa não lhes dar mais a mínima bola. A partir daí a Bruzundanga foi feliz para sempre enquanto durou. 

Sidney Chalhoub

sábado, 17 de setembro de 2016

O segredo do procurador

                                                                  Sidney Chalhoub (UNICAMP/ Harvard University)


            Não tenho provas, mas estou convicto de que o sapientíssimo Procurador Dallagnol é leitor contumaz de Machado de Assis. Tudo nele é sofisticado, retórica supimpa, slides complexos, lógica irreprimível. Há também a elegância da retórica e a fineza das metáforas, ao se referir a uma investigação a “avançar verticalmente para cima” para chegar “ao topo da pirâmide”, no uso abundante de substantivos com conotação adjetiva, como o epíteto de  “comandante” pespegado ao ex-presidente Lula, dito “comandante em chefe de uma quadrilha”, “maestro de uma orquestra criminosa” e cousas que tais.  
            Quantas “evidências” de que o dito Procurador leu “O segredo do bonzo”, de Machado de Assis, publicado pela primeira vez no longínquo ano de 1882! Mais do que isto, inspirou-se nesse texto em seu pronunciamento desta semana, o qual deixou a sociedade bruzundanguense embasbacada. Parece até que subiu ao púlpito com o textinho malocado no bolso interno do paletó, mas não posso provar o que me disse quem o delatou, apesar de eu ser, no que tange a delações, tão crédulo quanto a mais pia beata deste mundo. Conhecem o conto machadiano? Pois lhes dou numa cápsula.
            Era uma vez... O conto não é meu, vamos direito ao ponto. Em tempos remotos, num lugar que não importa qual seja, havia um sábio chamado Pomada, muito respeitado entre os bonzos. Pomada formulara uma doutrina capaz de regenerar a humanidade, de livrá-la dos grilhões e misérias da realidade, “visto não ser o homem todo outra cousa mais do que um produto da idealidade transcendental”. Cá está o centro da doutrina pomadista: “se uma cousa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente”. Para chegar a essa síntese, Pomada observou vários fenômenos complexos. Por exemplo, se uma jabuticabeira está cheia de frutos, mas ninguém os degusta, ela vale tanto quanto uma planta bravia que só dê espinhos. Se alguém acumula enorme sabedoria, mas ninguém o vê como um sábio, de nada valerá tanta sabedoria. Não há espetáculo sem espectador, nem verdade sem opinião. Em outras palavras, a opinião produz a verdade.  
            Pomada se viu logo cercado por um círculo fiel de discípulos dispostos a sair pelo mundo a praticar seus ensinamentos. Patimau explicava às multidões a origem dos grilos, que nasceriam da cópula entre o ar e as folhas de coqueiro. Languru descobrira o princípio da vida, que estaria numa gota de sangue de vaca. E assim por diante, com esses varões astutos a utilizar muita arte para “meter” essas ideias “no ânimo da multidão”. Figuras que tais passaram a desfrutar da “nomeada de grandes físicos e maiores filósofos”, até que chegou a vez do experimento de Diogo Meireles, destinado a colocar todos os outros no chinelo.
            Grassava no reino uma epidemia estranha cujo principal sintoma era a inchação descomunal dos narizes. Havia pessoas que ficavam com a cara tomada pelo fungador, não suportavam o peso, ficavam tristes, suicidavam-se. Diogo Meireles, médico habilíssimo, concluíra que não haveria mal em extrair os narizes aos doentes, prontificava-se a fazer a cirurgia. Todavia, não encontrava gente disposta a isso, pois, no que concernia a narizes, os afetados preferiam "o excesso à lacuna”. Até que Diogo Meireles teve uma ideia inspirada na ideologia pomadista. Mandou reunir físicos, filósofos, autoridades, todo o povo enfim, e comunicou à multidão, ao que parece por meio de slides de powerpoint enviados do futuro, por internet galáctico-sideral, que revelaria um segredo capaz de eliminar o sofrimento causado pela epidemia reinante. A solução era simples: “substituir o nariz achacado por um nariz são, mas de pura natureza metafísica, isto é, inacessível aos sentidos humanos, e contudo tão verdadeiro ou ainda mais do que o cortado”. Após alguma hesitação, apareceram pacientes. Diogo Meireles extraía os narizes doentes com grande destreza, depois fingia pegar numa caixa um nariz metafísico e o implantava na cara do paciente, com tantos ademanes e afetação científica que todos à roda juravam ver o que não podiam ver. A prova cabal do sucesso das operações era que os desnarigados voltavam logo a usar lenços de assoar.   
            Comentei com um amigo esse paralelo entre os segredos do bonzo e do Procurador da Bruzundanga. Ele objetou: o Procurador não é hipócrita, age por convicção. Sou justo, concedo ao Procurador o benefício da dúvida, ou a presunção de inocência, para lembrar uma expressão de outrora. Mas aí lembrei de Brás Cubas. O narrador das Memórias póstumas sabia que seu pai havia fabricado uma genealogia falsa para o nome da família. Incapaz de confessar que tão rica linhagem descendia de um tanoeiro, papai Cubas dizia que esse nome “fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em prêmio da façanha que praticou, arrebatando trezentas cubas aos mouros”. Em suma, arrumara-se uma origem nobre e guerreira para a família, vinculada a um episódio imaginário da guerra da cristandade contra os mouros. O que mais impressionava Brás Cubas era o fato de o pai ter passado a acreditar piamente na mentira que inventara: “uma imaginação graduada em consciência”. E via nisso vantagem, arrematando a peça com a seguinte filosofice: “o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é um sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo”. Por hipocrisia ou auto-ilusão, o fato é que papai Cubas dizia de uma realidade que não via, não podia ver.

            Enfim, pode ser que o Procurador acredite naquilo que fala, pode ser que não. De qualquer forma, o episódio da semana é um belo exemplo da ideologia pomadista vigente na Bruzundanga contemporânea: “se uma cousa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião...”. 

sábado, 23 de abril de 2016

A insurreição dos hipócritas: base social e ideologia.

                                                                       Sidney Chalhoub (UNICAMP/ Harvard University)

            As historiadoras futuras da Bruzundanga haviam passado a semana a matutar sobre cousas que tinham lido a respeito das mulheres daqueles tempos interessantes, vários milênios antes do Apocalipse. Não acabavam de entender o que significavam aquelas palavras: "recatada", "do lar", "bela". Havia também uma matéria enigmática, sobre ataque de nervos ou de histeria de mulher em cargo de poder. Jamais tinham visto tais adjetivos pespegados em pessoas como elas próprias. Não logravam saber ainda o que aquilo tudo significava quando uma delas saltou para trás, ao ler o título de um texto de época: "Aufstand der Scheinheiligen" (Der Spiegel), ou a "insurreição dos hipócritas". A língua germânica havia desaparecido havia muito, mas sobrevivera a fama de seriedade dos alemães. Por isso espantava aquele título de matéria sobre a votação do impichamento da presidenta da Bruzundanga na câmara baixa do parlamento.
            Curiosas por vício do ofício delas, as historiadoras seguiram a pista. Acharam de pronto um documento jurídico de erudição supimpa, na qual acusadores dum ex-presidente que era também um ex-operário citavam a parceria de dois filósofos alemães, Marx e Hegel, na autoria de escritos mui subversivos. Uma delas identificou, no douto parecer, um erro de ortografia de somenos importância no nome de um dos filósofos; no entanto, o que importava era a constatação de que na Bruzundanga se conhecia a excelsa filosofia teutônica. Logo adiante, eis que surge um provérbio popular: "Die dümmsten Bauern ernten die dicksten Kartoffeln", que quer dizer mais ou menos o seguinte: "Os camponeses mais estúpidos colhem as maiores batatas". Estupor geral. Todas gritaram ao mesmo tempo:  "Ao vencedor, as batatas!", "Quincas Borba!", "Machado de Assis!". Atordoadas, porém de novo esperançosas, reabriram o grosso volume comentado das Memórias póstumas de Brás Cubas, o tratado-mór de sociologia bruzundanguense.
            Machado de Assis, estudante de alemão, surrara o dicionário para ler o artigo do Der Spiegel e empacara numa passagem dele, na qual se dizia... As leitoras sabem alemão? Eu tampouco, mas aqui vai outra algaravia dos infernos: "ein großer Teil der brasilianischen Gesellschaft strukturell konservativ gesinnt ist". Quer dizer, a "insurreição dos hipócritas" tornara-se possível devido ao apoio que recebera de parte da sociedade bruzundanguense "estruturalmente conservadora". Num achado de endoidecer críticos literários de qualquer tempo, as historiadoras reconstituíram uma passagem riscada nos manuscritos das Memórias póstumas, em que Machado de Assis, num posfácio, afirmava que um de seus objetivos no volume fora destrinchar a ideologia da classe brascúbica, a base social dos insurretos da câmara baixa.
            Foram vários dias de releitura lenta das Memórias póstumas, de insônia, de descobertas horripilantes, até que as historiadoras do futuro elaboraram um esquema das principais ideias do golpe de abril de 2016, conhecido nos anais históricos da Bruzundanga como "A Grande Usurpação". Ficaram tão estupefatas com suas descobertas que decidiram escrever um livro sobre o tema. Aqui vai o breve roteiro dos capítulos, que me trouxeram em mãos:
Capítulo I: Misoginia. Nos capítulos iniciais das Memórias, Brás Cubas, o defunto autor, narra a sua própria morte. Num deles, "O delírio", revela ao mundo as suas alucinações mentais nos instantes derradeiros. Montado num hipopótamo, Brás Cubas é forçado a viajar até "à origem dos séculos". Após devorar muito caminho, o animal estaca numa imensidão branca e gelada, silenciosa como o sepulcro. Eis que surge "um vulto imenso, uma figura de mulher... fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano". A mulher diz se chamar "Natureza ou Pandora", e completa em voz tonitruante, seguida de uma gargalhada fenomenal: "sou tua mãe e tua inimiga". Em certo momento, afirma o narrador, Pandora "estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma". Indefeso, frágil, Brás implora pateticamente por um minuto a mais de existência. A grande mãe Natureza responde com um desdém do tamanho de todos os séculos: "Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada". O temor visceral e primitivo de Brás pelas mulheres, o seu receio de ser dominado por elas, é metáfora da monomania ou patologia social da classe brascúbica diante de mulheres livres e insubmissas, como a presidenta da Bruzundanga. Desesperados, unem-se para combatê-la, como se vê pela súcia variadíssima de sujeitos engravatados e lúgubres sempre a cercar a presidenta. Será possível desenvolver o tema por meio do cruzamento de várias fontes, como, por exemplo, aquela faixa de uma manifestação popular: "Quando a mulher é livre, os marmanjos surtam".
Capítulo II: Racismo. Brás Cubas se considerava o maior fodão com as mulheres (pedimos desculpas aos homens de épocas remotas da Bruzundanga, que sabemos mui recatados, mas não há jeito melhor de descrever as ilusões brascúbicas diante das personagens femininas). Uma de suas conquistas chamava-se Eugênia, "a flor da moita". A menina era filha de dona Eusébia e de Vilaça, homem casado e sisudo (segundo O Sensacionalista, 97% dos parlamentares que citaram deus e a família em seus discursos de voto pró-impichamento têm amantes, alguns deles até mesmo concubinas teúdas e manteúdas), num caso extraconjugal que fora objeto de uma travessura de Brás na infância. Os namorados clandestinos trocaram um beijo atrás da moita, visto e denunciado pelo menino, dando a Brás a ideia da alcunha citada acima, de "flor da moita", que atribuiu à pequena. Eugênia foi a única mulher por quem Brás teve uma inclinação séria, sentindo-se de fato ameaçado pela possibilidade de amá-la. Diante de semelhante perigo, o mancebo reage com determinação viripotente. Numa série de agressões, ele debocha do defeito físico da menina, que era um pouco coxa de nascença: "O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?". Além da obsessão brascúbica com o belo feminino, que a passagem permite explorar, dela se segue o episódio do beijo de Brás em Eugênia, durante o qual o maganão pensa "na moita, no Vilaça, ...a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, à tua origem". Em ritmo vertiginoso de alusões irônicas, Machado de Assis faz com que Brás veja Eugênia, cujo nome significa "a bem-nascida", como naturalmente inferior, logo imprópria para casar com ele, relacionando-a inclusive com uma borboleta preta que acabara de matar em seu quarto, a golpe de toalha: "Por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma. O melhor que há, quando se não resolve um enigma, é sacudi-lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava o cérebro". A negritude da borboleta e o defeito físico da menina se articulam na cabeça de Brás, resultando no projeto de eliminação desse Outro indesejável ou incômodo. O tema está ligado a vários eventos contemporâneos da Bruzundanga, como a reação brascúbica às políticas de ação afirmativa e à vinda de médicos cubanos ao país. Ele pode ser explorado por meio da análise de muitas fotos e faixas de manifestações populares, como esta: "A casa grande surta, quando a senzala vira médica".
Capítulo III: Privilégio e ódio de classe. Brás Cubas achava que a sua condição de proprietário de cousas e gente escravizada tinha origem na natureza, era assim porque tinha de ser. O seu filósofo preferido, Quincas Borba, resumiu certa vez o modo de ver o mundo da classe brascúbica, no que tange ao seu suposto direito natural de explorar o trabalho dos outros, em especial dos negros, para sempre. Ao almoçar, trinchando uma coxinha de frango, Quincas Borba diz assim: "Mas eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema, senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano, suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por dez ou doze homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a cordoalha e outras partes do aparelho náutico. Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e lutas, executados com o único fim de dar mate ao meu apetite". Que maravilha! O mundo inteiro conspira para que o coxinha trinche a coxinha! A imagem se completa numa espécie de antropofagia de classe, pois a grã-finagem brascúbica, paradoxalmente, parece ter certo prazer mórbido na extinção daqueles cujo trabalho produz tudo o que podem usufruir. Quando dona Plácida, criada de Virgília, alcoviteira de seus amores com Brás, está à morte, Brás faz a seguinte reflexão: "Depois do almoço fui à casa de D. Plácida; achei um molho de ossos, envolto em molambos, estendido sobre um catre velho e nauseabundo; dei-lhe algum dinheiro... morreu uma semana depois. Minto: amanheceu morta; saiu da vida às escondidas, tal qual entrara". Em seguida, Brás se pergunta se houvera alguma justificativa para a  existência de dona Plácida. Responde assim: "adverti logo que, se não fosse D. Plácida, talvez os meus amores com Virgília tivessem sido interrompidos, ou imediatamente quebrados, em plena efervescência; tal foi, portanto, a utilidade da vida de D. Plácida. Utilidade relativa, convenho; mas que diacho há absoluto nesse mundo?".
Capítulo IV: Corrupção. Como é sabido, a classe brascúbica teve origem no maior caso de corrupção da história da Bruzundanga, cousa nunca jamais vista, antes ou depois em qualquer época, até o fim dos tempos. Nem o hipopótamo do delírio de Brás seria capaz de levá-lo a outras terras tão gélidas e sombrias. Mais de setecentos e cinquenta mil africanos foram escravizados ilegalmente e introduzidos no país por contrabando entre 1831 e 1850. A expansão do café, donde vem a riqueza brascúbica, surgiu da exploração do trabalho dessa gente criminosamente escravizada. Segundo a Federação das Indústrias da Tucanolândia (província mais rica da Bruzundanga), em informação que oferecemos aqui num furo de reportagem histórica, "O país tem o dever moral, político e econômico de aprofundar ações afirmativas destinadas a reparar esse crime contra a humanidade. Todos os nossos recursos ficam doravante à disposição do Estado bruzundanguense para tal fim". Apesar desse fato novo e alvissareiro, Machado de Assis demonstra, em sua obra seminal, que a classe brascúbica tem o costume de perdoar os atos de corrupção em suas fileiras. No romance, a personagem do traficante de escravizados é simbolizada pela figura de Cotrim, cunhado de Brás, torturador de africanos. No entanto, Brás se mostra bastante compreensivo com o seu parente: "Como era muito seco de maneiras, tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais. A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na dor que padeceu quando lhe morreu Sara, dali a alguns meses; prova irrefutável, acho eu, e não única. Era tesoureiro de uma confraria, e irmão de várias irmandades...". A última frase é promissora, pois indica uma relação íntima entre corrupção e instituições religiosas.    
Capítulo V: Desfaçatez. Ah, que tema inesgotável! Já escrevemos sobre ele. Todavia, não há como resistir aos fatos recentes, desta semana mesmo, logo em seguida à votação do impichamento da presidenta na casa baixa do parlamento. Observadores externos à Bruzundanga, finalmente atentos aos sentidos profundos do que acontece no país, ficaram alarmados com o desfile de nulidades parlamentares do último domingo, a votar em nome do pai, do filho e do espírito... Machado de Assis, noutro texto que ainda teremos de estudar a fundo, interpretou o episódio como manifestação da "Igreja do diabo", sugerindo pois que havia naquilo o espírito de Satanás. A repercussão de tal pândega lá fora provocou a ida imediata ao exterior dum aliado d'O Grande Usurpador, alcunha popular do vice-presidente da Bruzundanga. Que espetáculo curioso, ver aquele sujeito do partido da ave de bico comprido, representando o vice-presidente do partido que está sempre no poder (apesar de nunca ter ganho eleição para presidente), mui perfumado, engomadinho, respeitabilíssimo, a explicar para o Tio Sam que o ovo não é um ovo e que o círculo é quadrado. Provocou hilaridade em uns, e noutros aquele sentimento da vergonha alheia. Que situação! O importante, todavia, é tentar manter as aparências. O pai de Brás Cubas disse certa vez ao filho: "Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens. Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios...". Que divertida a percuciência machadiana! Privilégios da "posição", dos "meios", valimento pela opinião dos outros... Dizem que Machado de Assis escreveu essas linhas inspirado num documento histórico curiosamente chamado "Uma ponte para o futuro", que, dizem, foi o GPS utilizado por aquele hipopótamo do delírio, a galopar com Brás de volta ao passado mais longínquo.
            As historiadoras terminaram o roteiro de seu livro horrorizadas: misoginia, racismo, ódio de classe, corrupção, desfaçatez. De fato, "ao vencedor, as batatas". Fica melhor em alemão: " Die dümmsten..." (o resto como apareceu acima).

Sidney Chalhoub


P.S.: Agradeço ao meu Bruder baiano, João Reis, por sugerir a leitura da matéria do Der Spiegel e por me enviar o provérbio alemão. 

sexta-feira, 25 de março de 2016

Desfaçatez de classe


                                                                      Sidney Chalhoub (UNICAMP/Universidade de Harvard)

            Os futuros anais históricos da Bruzundanga contarão admirados as efemérides daqueles remotíssimos dias de março de 2016. No quarto dia daquele mês, sexta-feira aziaga, certo juiz da roça, um tanto guapo, outro tanto aloprado, prendeu por um dia um ex-presidente da república que era também um ex-operário. O acontecimento espetacular acelerou a história.
            As duas semanas seguintes foram um deus nos acuda. O juiz da roça, ao que se dizia um simpatizante do partido da ave de bico comprido, bisbilhotou e divulgou ilegalmente conversas de autoridades diversas, até mesmo da presidenta da Bruzundanga. O magistrado de província justificou os atos que praticara à revelia da lei como decorrentes da elevadíssima estatura moral de sua pessoa e de seus propósitos. Tais escutas telefônicas, consideradas de gravidade ímpar por parte da imprensa que as considerou de gravidade ímpar (sic), tinha como objetivo conclamar a massa dos cidadãos parrudos da república a ir para a rua e mostrar a sua cara.
            Eles foram. Carregaram cartazes com a cara do juiz da roça, que não coube em si de contente e filosofou, mui profundamente, sobre a sabedoria das ruas e a necessidade de ouvi-las. Era preciso derrubar o governo da Bruzundanga. Dirigentes do partido da ave de bico comprido e do partido que nunca está fora do poder reuniram-se para planejar o novo governo, nomear ministros, pactuar o aprofundamento da política econômica em curso, que não vinha dando resultado, o que comprovava a excelência de sua concepção.
            Uma sumidade do partido da ave de bico comprido acalmou os políticos que seriam depostos, perseguidos pelo juiz da roça e enviados para o calabouço. Explicou mui serenamente que o novo governo não seria vingativo. Um magistrado da Altíssima Corte do país tagarelava todos os dias, em entrevistas à mídia, a respeito de como julgaria os processos que ainda lhe chegariam à mesa para julgar (sic). Num último lance genial, uma espécie de cereja do bolo, um ex-presidente que era também um ex-intelectual, muito indignado com a possibilidade de o ex-presidente que era também um ex-operário ocupar uma pasta ministerial, sentenciou: "analfabeto não pode ser ministro".
            Que tempos memoráveis! Machado de Assis, intérprete-mor da Bruzundanga, escreveu um livro, chamado Memórias póstumas de Brás Cubas, que consistiu numa espécie de tratado de interpretação sociológica das duas semanas da história da Bruzundanga, naquele ano de 2016, decorridas entre o quarto e o décimo oitavo dias de março. Em tal compêndio de sapientíssima hermenêutica do repertório simbólico da sociedade bruzundanguense, o autor formulou o conceito de descaramento ou desfaçatez de classe.
            Autor genial e complexo, Machado de Assis só teorizava por meio de alegorias, ou por linhas tortas, que é um jeito mais simples de dizer a mesma cousa. Por isso inventou Brás Cubas, outro guapo da história pátria, narrador e protagonista das Memórias. Brás Cubas não era um autor defunto, mas um defunto autor. Quer dizer, ele decidiu contar a própria história depois de morto, enviando os capítulos, direto do além-mundo, por correio sideral. A circunstância de morto dava ao autor daquelas páginas uma desenvoltura primorosa: "Agora... que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo"; e se o livro, "fino leitor", "te não agradar... pago-te com um piparote", que, ao que parece, era como se dizia "peteleco" naquela época.
            Por conseguinte, o primeiro elemento constituinte do conceito de desfaçatez de classe é o transbordamento de autoconfiança, ou o impudor radical, que passa a guiar as atitudes de Brás Cubas e seus semelhantes. Podem "confessar tudo" o que pensam e fazem. Brás Cubas foi sujeito rico, dono de propriedades no Rio de Janeiro imperial, senhor de escravos, entre eles Prudêncio. Este era "um moleque de casa", "o meu cavalo de todos os dias"; "punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o". Se Prudêncio reclamasse, Brás retorquia: "Cala a boca, besta!".
            Brás Cubas sofria de monomania em relação às mulheres. Ele organizou a sua narrativa em torno das personagens femininas de sua vida, desde Pandora ou a mãe Natureza, que lhe aparecera no delírio derradeiro antes da morte (ou no momento do nascimento do defunto autor), até Virgília, passando por Eugênia, Marcela, dona Plácida etc. Dona Plácida foi uma criada da família de Virgília, que se tornou depois alcoviteira dos amores clandestinos desta senhora com o memorialista.
            Brás se perguntou certa vez sobre a utilidade da vida de dona Plácida, queria desvendar o porquê de sua vinda ao mundo. Chegou à seguinte conclusão: "para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital".
            As historietas de Prudêncio e dona Plácida encapsulam o segundo elemento constitutivo do conceito de descaramento ou desfaçatez de classe. A desfaçatez de classe acontece quando a classe brascúbica, uma vez achacada de crise de despudor, como ocorreu na Bruzundanga naquelas memoráveis Jornadas de março de 2016, destampa ao mundo os mais recônditos segredos de sua maneira de ver as cousas, segundo a qual negros, mulheres e pobres existem para ralar ou empurrar traquitanas enquanto o patronato chiquérrimo vocifera, à beira-mar, contra a presidenta eleita.
            Brás Cubas articulou teoricamente a ideia, central ao conceito sociológico de desfaçatez de classe, de que as desigualdades ou injustiças sociais são parte necessária da paisagem, assim como as montanhas, os rios e as praias: "Outrossim, afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares".
            Quiçá o momento analiticamente mais promissor das Jornadas de março de 2016 tenha sido o comentário do ex-presidente que era também ex-intelectual, de que "analfabeto não pode ser ministro". A concisão dialética da frase é notável. Ao decifrá-la à luz do conceito de desfaçatez de classe, temos uma visão de mundo construída por metáfora, ou pela transposição do sentido próprio ao figurado. Assim, "analfabeto" significa a maioria da população da Bruzundanga, cujo lugar social, em respeito à tradição, deve permanecer o mesmo na longa duração histórica, com tendência ao infinito. Já "ministro" é fórmula abreviada de dizer classe brascúbica, conforme a definição de Machado de Assis (op. cit., passim).
            Um participante das manifestações de 18 de março, contrárias ao impedimento da presidenta, foi às ruas com um cartaz no qual criticava a tese de Machado de Assis a respeito da desfaçatez de classe, por considerá-la desnecessariamente hermética. Segundo o manifestante, a crise política da Bruzundanga se resumia ao seguinte: "Quando a senzala aprende a ler, a casa grande surta". Isso escrito em letras garrafais, o que é uma maneira de vencer no grito, e Machado de Assis era gago, o que de antemão deu ganho de causa ao crítico popular.
            Os anais históricos da Bruzundanga guardam um enigma. Os historiadores não descobriram o que aconteceu depois das Jornadas de março. Uns dizem que as duas semanas de desfaçatez de classe demonstraram o poder invencível da classe brascúbica, logo o impedimento da presidenta era fait accompli, favas contadas. Outros, adeptos de ver as cousas por meio de velhos adágios populares, sustentaram que "a cura veio pelo excesso do mal". O descaramento de classe suscitou o demônio rubro da resistência, quer dizer, a virada satânica da história.

            Outra personagem popular, cheia de ouvir tanta teoria, recorreu ao tesouro de sabedoria do esporte bretão e acabou com esta crônica: "o jogo é jogado, e só acaba quando termina". 

quinta-feira, 17 de março de 2016

A História como hiper-ficção (Sidney Chalhoub)

                                                                 Sidney Chalhoub (UNICAMP/ Harvard University)

Itaguahy é aqui e agora, diria talvez Machado de Assis, ao observar o ponto ao qual chegamos. Ao inventar Simão Bacamarte, o protagonista de "O alienista", Machado mobilizou sem dúvida referências diversas, tanto literárias quanto políticas. Parece certo que se inspirou também em personagens históricas concretas, ou em situações de sua época que produziam tais personagens. Na década de 1880, habitante da Corte imperial, ele assistia havia décadas à ciranda infindável de epidemias de febre amarela, varíola, cólera, etc. e a luta inglória dos governos contra tais flagelos. O pior da experiência era que o fracasso contínuo das políticas de saúde pública, ou da higiene pública, como se dizia com mais frequência, provocava, paradoxalmente, o aumento do poder de médicos higienistas e engenheiros. Esses profissionais se encastelavam no poder público munidos da "ciência" e da técnica que poderiam renovar o espaço urbano de modo radical e "sanear" a sociedade. Demoliam-se casas populares, expulsavam-se moradores de certas regiões, reprimiam-se modos de vida tradicionais, regulava-se muita cousa sob o manto do burocratismo cientificista. E as epidemias continuavam. Machado de Assis refere-se a esse quadro como "despotismo científico", em "O alienista" mesmo, ao descrever "o terror" que tomara conta de Itaguahy diante das ações de Bacamarte. Havia inspetor de higiene e engenheiro da fiscalização sanitária a agir com convicção de Messias, cheios de autoridade, inebriados de seus pequenos poderes.
Simão Bacamarte, portanto, é desenhado d'après nature, para usar a expressão daquele tempo meio afrancesado, por mais caricatural que a personagem possa parecer. A arte imita a vida, segundo Machado de Assis, quem sabe. A estória que contou é conhecida por todos, talvez uma das referências intelectuais clássicas mais compartilhadas nesta nossa república da bruzundanga. Por isso é uma estória boa para pensar a nossa condição coletiva, Brasil, março de 2016. Bacamarte queria estabelecer de modo objetivo e irrefutável os limites entre razão e loucura. Conseguiu amplos poderes da câmara municipal, dinheiro para construir a Casa Verde, seu hospício de alienados, e passou a atuar como que ungido por suas convicções científicas. Ao contrário do que imaginara inicialmente, encontrou uma diversidade assombrosa de loucos. Se o eram mesmo, continuam conosco, como os impagáveis loucos "ferozes", definidos apenas como sujeitos grotescos que se levavam muito a sério. A galeria de loucos que tinha a mania das grandezas é quiçá a mais relevante em nossa situação atual. Havia o cara que passava o dia narrando a própria genealogia para as paredes, aquele pé rapado que se imaginava mordomo do rei, e outro, chamado João de Deus, propalava que era o deus João. O deus João prometia o reino do céu a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros. Ainda hoje em dia Simão Bacamarte acharia material humano de sobra para encher a Casa Verde. Se ampliasse a pesquisa para a internet, ele teria de investigar a hipótese de a loucura engolfar o planeta inteiro. Afinal, segundo ele, "a razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia". Ou talvez não. Se Bacamarte lesse e visse a grande mídia brasileira, é possível que concebesse um conceito mais circunscrito de alienação mental. Sem a cacofonia virtual estaríamos expostos apenas à monomania de uns poucos, e a diversidade de opiniões é sacrossanta nesta nossa hora. Bendita internet.
O messianismo cientificista de Bacamarte se foi. Mas o curioso é que a ficção dele criou raízes na história brasileira, virou realidade. Muitos dentre nós, de cabelo bem grisalho ou até nem tanto, lembrarão da situação do país no final dos anos 1980 e no início da década seguinte, a viver a passagem sem ponte da ditadura para a hiperinflação. Em retrospecto, penso que havia um quê de continuação da ditadura naqueles planos econômicos todos que produziram até uma nova caricatura de Messias, o caçador de Marajás. Agora a população não era mais culpada de viver na imundície e nos maus costumes, a causar epidemias de febre amarela. No entanto, estava inoculada pelo vírus da cultura inflacionária. Daí vieram os czares da Economia ou ministros da Fazenda, ou que nome tivesse aquela desgraceira. As "autoridades" daquela ciência cabalística confiscavam poupança, congelavam preços, nomeavam "fiscais" populares dos abusos econômicos, podiam fazer o que lhes desse na veneta. Mas dava errado. A inflação voltava, os caras não acertavam. Vinha outro plano, mais confisco, mais arrocho salarial, e nada. Viveu-se assim por uma década, ou mais. Cada ministro era um pequeno deus, cujo poder tinha relação direta com a sua profunda ignorância sobre o que fazer para dar jeito na bruzundanga. Os higienistas do final do século XIX e os economistas do final do século XX tinham muito em comum. Em algum momento, o despotismo econômico se foi. Tinha de passar, passou. Tivemos democracia por algum tempo, com todos os seus rolos, mas sem salvadores da pátria, o que era um alívio. Livres, ainda que sob a batuta do deus Mercado, uma espécie de messianismo sem Messias, ou sem endereço conhecido.
Eis que surge, leve e fagueiro, o messianismo judiciário. De onde menos se esperava, a cousa veio. Simão Bacamarte encarnou de novo, vive-se a história como a realização radical da ficção, hiper-ficção. As operações de despolitização do mundo são as mesmas --no despotismo científico do XIX, no despotismo econômico do XX, no despotismo judiciário do século XXI. De repente, num processo que historiadores decerto explicarão no futuro, com a pachorra e a paciência daqueles que não vivem o presente às tontas, pois não sabem esquecer o passado, um determinado poder da república se emancipa dos outros, se desgarra, engole tudo à sua volta. Em nome da imparcialidade, da equidade, da prerrogativa do conhecimento (tudo igualzinho aos higienistas e aos economistas de outrora), eles provincializam a nação inteira, e negam, a cada passo, o que professam em suas perorações retóricas: agem de forma partidarizada, perseguem determinados indivíduos e organizações, transformam a sua profunda ignorância histórica num poder avassalador.
Todos sabemos como terminou a estória de Simão Bacamarte. Depois de testar tantas hipóteses, de achar que a loucura poderia quiçá abarcar a humanidade inteira, ele concluiu que o único exemplar da espécie em perfeito equilíbrio de suas faculdades mentais era ele próprio. Por conseguinte, o anormal era ele, alienado só podia ser quem não tinha desequilíbrio algum em suas faculdades mentais. Bacamarte trancou-se na Casa Verde para pesquisar a si próprio e lá morreu alguns meses depois. Pode ser que haja aí um bom exemplo. Alguém saberia dizer, por favor, onde Machado de Assis deixou a chave da Casa Verde?
P.S. A semelhança entre Simão Bacamarte e um determinado juiz de província do Brasil atual me foi sugerida por um amigo aqui de Harvard, a quem agradeço pela inspiração. Obrigado a todos aqueles que sairão às ruas, nesse 18 de março, em defesa da democracia.

                                      Sidney Chalhoub (UNICAMP/ Universidade de Harvard)

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Sobre calar e escutar frente ao racismo (Ynaê Lopes dos Santos)

Ynaê Lopes dos Santos (CPDOC-FGV)
Num país com relações raciais tão complexas como o Brasil, não era de se esperar que na sua maior festa fosse diferente. Nada mais indicativo do caráter estruturante do racismo brasileiro do que o Carnaval. E na festa momesca deste ano, tivemos uma série de episódios que demonstram como nosso racismo se fantasia...
Poderia falar da mulata globeleza e da perversa objetificação e sexualização da mulher negra num dos únicos momentos em que essa mesma mulher exerce algum tipo de protagonismo no cenário midiático brasileiro[1]. Também seria interessante analisar a insistência na defesa da fantasia de “nega maluca”, mas espero que a forte campanha liderada por mulheres negras tenha dado o recado - e pra aqueles que não entenderam muito bem, sugiro que assistam a apresentação da Beyoncé no Super Bowl, desta semana[2]. Falar da escolha da Grazi Massafera como mulata do Gois também daria pano pra manga, mesmo porque o comentário da atriz foi tão ruim quanto a escolha do jornalista. Ou então poderia examinar a “curiosa” composição étnica dos blocos de rua do Rio de Janeiro e a ideia – errônea ao meu ver -, de que neste momento do ano se vive a plena democracia no Brasil.
No entanto, a foto “carnavalesca” do menino negro adotado por um casal de brancos chamou ainda mais minha atenção e, num primeiro momento, despertou certa revolta (principalmente por envolver uma criança, que só mais tarde fui saber que era filho do “Aladim” e da “Jasmine”). Como pessoas minimamente antenadas, dispostas a adotar e amar um menino negro não conseguem enxergar que fantasiá-lo de macaco é uma atitude racista? Como alguém que se propõe a viver a paternidade/maternidade tendo passado pelo burocrático (e necessário) processo de adoção brasileiro pode pensar num mundo ideal segundo os padrões da Disney?!!
A enxurrada de comentários nas redes sociais demonstrou que, embora muitas pessoas tenham concordado comigo, outras tantas acharam que as críticas a esses pais foram exageradas ou despropositadas, pois “racismo não é fantasiar o filho negro de macaco, racismo é associar negro a macaco”. E também porque “esse pessoal politicamente correto tá ficando um saco, é Carnaval, qual o problema?!!”.
O problema aqui é que (pasmem!!), mas infelizmente, nosso racismo é tão sofisticado que ter amigo(a)s negro(a)s, namorado(a)s negro(a)s, filho(a)s negro(a)s não é, nem nunca foi, um “atestado antirracismo”. É preciso mais, muito mais.
Em primeiro lugar, é necessário reconhecer que o racismo existe, e que ele está por toda parte. Justamente por estar em todos os lugares, o racismo cria uma espécie de névoa entorpecente que faz com que as pessoas acreditem que as coisas “tenham lugares determinados”, criando uma falsa ideia de normalidade. Toda vez que essa normalidade é questionada, uma onda conservadora parece invadir as pessoas (principalmente as privilegiadas por esse jogo), querendo que a “ordem” volte a reinar. Um exemplo cabal disso é como muitas pessoas brancas ficam atordoadas (e muitas vezes ofendidas) quando são chamadas de pessoas brancas por pessoas negras. Por quê? Porque ser branco é estar dentro da normalidade; você não precisa dizer que alguém branco é branco. Mas, por outro lado, “- olha como aquela menina negra é linda!”; “ - nossa, esse negão é ponta firme!” Nosso racismo cotidiano fez com que o(a)s negro(a)s fossem transformados em adjetivos, porque, em tese, não lhes cabia o papel de sujeitos.
Contudo, por mais que a estrutura racista tentasse abafar, a luta dos negros e negras brasileiros é tão antiga quanto o próprio Brasil. As facilidades da internet fizeram com que parte da nossa luta ganhasse um fôlego novo, pois trajetórias que pareciam solitárias se cruzaram criando novas vozes, cada vez mais fortes e empoderadas. Então, ainda na onda antirracista, o segundo passo seria reconhecer que essa é uma luta em que nós negro(a)s somos protagonistas.
Por isso, para aqueles que entenderam e se reconheceram na cadeia de privilégios criada pelo racismo é preciso calar e escutar. Quando uma atitude é entendida como racista por pessoas negras, ela nada mais é... do que uma atitude racista. No caso da "família do Aladim", muitos descreditaram o racismo da foto, argumentando que “- o racismo está nos olhos de quem vê”. Está aí o único ponto em que concordo com essas pessoas. Por criar lugares de privilégio, o racismo também fez com que suas múltiplas manifestações possam ser tomadas como exagero ou os atuais mimimis que pululam nas redes sociais. Ora, nada mais natural e legítimo do que ele (o racismo) ser melhor enxergado pelo(a)s negro(a)s!
Uma vez mais, acredito que calar e escutar se faz fundamental... Por que será que determinadas lutas contra o racismo parecem ofender determinadas pessoas? Por que algumas atitudes que escancaram o racismo incomodam tanto? Eu defendo que esse incômodo é fruto do caráter estruturante do racismo. Quando ele é revelado, assim, na cara, aquela normalidade toda com qual “estamos acostumados” é colocada em cheque... Os papéis se invertem e quem está acostumado a falar, tem que ouvir.
Como já disse, eu considero essa uma etapa muito importante, porque ela mexe na zona de conforto criada pela falsa normalidade citada há pouco. E, sobretudo, porque acredito que ouvir é uma forma de aprender. O racismo se alimenta de preconceitos e de ignorância com uma voracidade sem tamanho... Quebrar essa lógica exige trabalho, muito trabalho. Mudar de lugar, lidar com seus incômodos e entender que nossas referências são historicamente construídas são passos cruciais para compreender que, como Chimamanda Adichie apontou brilhantemente, a história não é única[3]. Para os pais do menino – que parecem ter descoberto a duras penas a dimensão do racismo brasileiro – espero que não restem dúvidas que criar um filho negro significa ampliar seus horizontes, ir atrás de novos referenciais e, provavelmente, dialogar muito pouco com o “mundo mágico da Disney” – que, diga-se de passagem, até hoje não apresentou nenhum protagonista negro(a) em seus desenhos com a exceção da “Princesa e o Sapo”, animação em que estereótipos racistas são apresentados sem nenhum cuidado e que os personagens principais passam mais tempo da forma de animais do que na de gente.
E já que estou falando em calar e escutar sugiro a eles, e aos demais interessados, que mergulhem no universo africano e aprendam com as histórias contadas há séculos pelos griots, como o mundo pode ser maior (e melhor) quando estamos dispostos a ouvir.








[2] Sobre a apresentação da cantora estadunidense Beyoncé ver: https://www.youtube.com/watch?v=-5BPfRHX1SE
[3] Ver a conferência “O perigo da história única” de Chimamanda Adichie em: https://www.youtube.com/watch?v=EC-bh1YARsc