Os
vermes que roeram as frias carnes do cadáver dele, Brás Cubas, delataram a um
juiz de província qual será o voto do ilustre defunto autor no dia 28 de
outubro próximo: Bolsonaro! O juiz ouviu o depoimento de Brás e, ato contínuo,
certo da importância dessa informação para influenciar eleitores indecisos a
respeito do pleito que se aproxima, vazou a transcrição para a imprensa, como
de costume. Nela se lê assim:
“Testemunha jurada aos Santos Evangelhos na forma da
lei, prometeu dizer a verdade, principalmente a pós-verdade; declarou chamar-se
Brás Cubas, memorialista supimpa, profissão vive de rendas, idade duzentos e
treze anos; perguntado sobre o pleito eleitoral de domingo próximo, disse que
votaria em Jair Bolsonaro, sua alma gêmea; disse mais, que sabia por ouvir
dizer que, ao falar de sua esposa, o dito candidato usa repetir o que ele,
Brás, disse certa vez de sua amante, Virgília: “era o travesseiro do meu
espírito, um travesseiro mole, tépido, aromático, enfronhado em cambraia e bruxelas.
Era ali que ele costumava repousar de todas as sensações más, simplesmente
enfadonhas, ou até dolorosas. E, bem pesada as cousas, não era outra a razão da
existência de Virgília”; também sabe por ouvir dizer que o candidato citado
pretende, no governo, colocar em prática a mesma política dele, Brás, em
relação aos negros: “Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos
os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de
freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil
voltas a um e outro lado, e ele obedecia, --algumas vezes gemendo, --mas
obedecia sem dizer palavra”; se disser algo, responder-se-á, “Cala a boca,
besta!”; perguntado sobre os direitos das empregadas domésticas, disse a
testemunha que o programa do candidato em tela é idêntico ao que adotou
enquanto viveu e depois, nos aposentos eternos: foram chamadas ao mundo para
“queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer,
andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar
a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada,
mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama
ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia”; perguntado
como achava que o candidato deveria lidar com ativistas que se opuserem ao seu possível futuro governo, disse
a testemunha, ruborizado, subindo o tom de voz, que precisam ser mandados ao
calabouço, a prisão dos escravos, “donde eles [descerão] a escorrer sangue”;
perguntado, por fim, qual o principal ponto de contato entre as filosofias de
vida dele, testemunha, e a do candidato Bolsonaro, disse, comovido, que ambos se
afeiçoam à “injustiça humana”, gostam de contemplá-la, “atenuá-la”,
“explicá-la”, “ao sabor das
circunstâncias e lugares”; e mais não disse nem lhe foi perguntado, com
o que o juiz de província mandou-me lavrar este auto, de cuja verdade dou fé
(...)”.
Presente ao interrogatório, Machado de Assis
permaneceu calado num canto da sala, fingindo que não estava ali. Os vermes o
perceberam e lhe fizeram a pergunta fatal: “E o Senhor, Criador desta Criatura,
votará em Bolsonaro?”. Machado de Assis gaguejou, não disse que sim, nem disse
que não. Diante da insistência dos vermes, respondeu enigmático, a caminho da
porta de saída: “É sabido desde a mais remota noute dos tempos que no dia 28 de
outubro de 2018 Hércules realizará o seu DÉCIMO-TERCEIRO trabalho. Boas Noutes!”.
Sidney Chalhoub, 25/10/2018