Sidney Chalhoub (UNICAMP/ Harvard University)
Não
tenho provas, mas estou convicto de que o sapientíssimo Procurador Dallagnol é
leitor contumaz de Machado de Assis. Tudo nele é sofisticado, retórica supimpa,
slides complexos, lógica irreprimível.
Há também a elegância da retórica e a fineza das metáforas, ao se referir a uma
investigação a “avançar verticalmente para cima” para chegar “ao topo da
pirâmide”, no uso abundante de substantivos com conotação adjetiva, como o
epíteto de “comandante” pespegado ao
ex-presidente Lula, dito “comandante em chefe de uma quadrilha”, “maestro de
uma orquestra criminosa” e cousas que tais.
Quantas
“evidências” de que o dito Procurador leu “O segredo do bonzo”, de Machado de
Assis, publicado pela primeira vez no longínquo ano de 1882! Mais do que isto,
inspirou-se nesse texto em seu pronunciamento desta semana, o qual deixou a
sociedade bruzundanguense embasbacada. Parece até que subiu ao púlpito com o textinho
malocado no bolso interno do paletó, mas não posso provar o que me disse quem o
delatou, apesar de eu ser, no que tange a delações, tão crédulo quanto a mais
pia beata deste mundo. Conhecem o conto machadiano? Pois lhes dou numa cápsula.
Era
uma vez... O conto não é meu, vamos direito ao ponto. Em tempos remotos, num
lugar que não importa qual seja, havia um sábio chamado Pomada, muito
respeitado entre os bonzos. Pomada formulara uma doutrina capaz de regenerar a
humanidade, de livrá-la dos grilhões e misérias da realidade, “visto não ser o
homem todo outra cousa mais do que um produto da idealidade transcendental”. Cá
está o centro da doutrina pomadista: “se uma cousa pode existir na opinião, sem
existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a
conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da
opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente”. Para chegar a essa
síntese, Pomada observou vários fenômenos complexos. Por exemplo, se uma
jabuticabeira está cheia de frutos, mas ninguém os degusta, ela vale tanto
quanto uma planta bravia que só dê espinhos. Se alguém acumula enorme
sabedoria, mas ninguém o vê como um sábio, de nada valerá tanta sabedoria. Não há
espetáculo sem espectador, nem verdade sem opinião. Em outras palavras, a
opinião produz a verdade.
Pomada
se viu logo cercado por um círculo fiel de discípulos dispostos a sair pelo
mundo a praticar seus ensinamentos. Patimau explicava às multidões a origem dos
grilos, que nasceriam da cópula entre o ar e as folhas de coqueiro. Languru
descobrira o princípio da vida, que estaria numa gota de sangue de vaca. E
assim por diante, com esses varões astutos a utilizar muita arte para “meter”
essas ideias “no ânimo da multidão”. Figuras que tais passaram a desfrutar da
“nomeada de grandes físicos e maiores filósofos”, até que chegou a vez do
experimento de Diogo Meireles, destinado a colocar todos os outros no chinelo.
Grassava
no reino uma epidemia estranha cujo principal sintoma era a inchação descomunal
dos narizes. Havia pessoas que ficavam com a cara tomada pelo fungador, não
suportavam o peso, ficavam tristes, suicidavam-se. Diogo Meireles, médico
habilíssimo, concluíra que não haveria mal em extrair os narizes aos doentes,
prontificava-se a fazer a cirurgia. Todavia, não encontrava gente disposta a
isso, pois, no que concernia a narizes, os afetados preferiam "o excesso à
lacuna”. Até que Diogo Meireles teve uma ideia inspirada na ideologia
pomadista. Mandou reunir físicos, filósofos, autoridades, todo o povo enfim, e
comunicou à multidão, ao que parece por meio de slides de powerpoint
enviados do futuro, por internet galáctico-sideral, que revelaria um segredo
capaz de eliminar o sofrimento causado pela epidemia reinante. A solução era
simples: “substituir o nariz achacado por um nariz são, mas de pura natureza
metafísica, isto é, inacessível aos sentidos humanos, e contudo tão verdadeiro
ou ainda mais do que o cortado”. Após alguma hesitação, apareceram pacientes.
Diogo Meireles extraía os narizes doentes com grande destreza, depois fingia
pegar numa caixa um nariz metafísico e o implantava na cara do paciente, com
tantos ademanes e afetação científica que todos à roda juravam ver o que não
podiam ver. A prova cabal do sucesso das operações era que os desnarigados
voltavam logo a usar lenços de assoar.
Comentei
com um amigo esse paralelo entre os segredos do bonzo e do Procurador da Bruzundanga.
Ele objetou: o Procurador não é hipócrita, age por convicção. Sou justo,
concedo ao Procurador o benefício da dúvida, ou a presunção de inocência, para
lembrar uma expressão de outrora. Mas aí lembrei de Brás Cubas. O narrador das Memórias póstumas sabia que seu pai
havia fabricado uma genealogia falsa para o nome da família. Incapaz de
confessar que tão rica linhagem descendia de um tanoeiro, papai Cubas dizia que
esse nome “fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em prêmio da
façanha que praticou, arrebatando trezentas cubas aos mouros”. Em suma,
arrumara-se uma origem nobre e guerreira para a família, vinculada a um
episódio imaginário da guerra da cristandade contra os mouros. O que mais
impressionava Brás Cubas era o fato de o pai ter passado a acreditar piamente
na mentira que inventara: “uma imaginação graduada em consciência”. E via nisso
vantagem, arrematando a peça com a seguinte filosofice: “o melhor da obrigação
é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque
em tal caso poupa-se o vexame, que é um sensação penosa, e a hipocrisia, que é
um vício hediondo”. Por hipocrisia ou auto-ilusão, o fato é que papai Cubas dizia
de uma realidade que não via, não podia ver.
Enfim,
pode ser que o Procurador acredite naquilo que fala, pode ser que não. De
qualquer forma, o episódio da semana é um belo exemplo da ideologia pomadista
vigente na Bruzundanga contemporânea: “se uma cousa pode existir na opinião,
sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a
conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da
opinião...”.