No último post, Larissa Rosa Corrêa tocou em vários pontos
nodais do atual ofício do historiador, como a relação entre memória e história
e a comercialização do passado: tudo muito importante para pensar e que estimula
a conversa, mas vou me ater apenas no valor do desconforto como habilidade
heurística, ou seja, a emoção como produtora de sentido histórico.
Larissa começou seu texto com expressões que diziam de um
mal-estar na opção do ‘passeio’ por Auschwitz - onde o turismo seria uma
banalização da tragédia - e atravessou a descrição da visitação ao campo de
concentração conduzindo o leitor para um sentido de culpa ou de equívoco em
fazer esse 'passeio'. Sua narrativa me incomodava...
Incomodava porque as palavras sugeriam que não se devesse
visitar lugares assim, como se a abstenção da visita fosse um modo de respeito aos
que sofreram o holocausto, posições das quais discordo, pois não creio que a
abstenção represente respeito, que a visitação seja afronta, nem tampouco que o
turismo – apesar da comercialização que o envolve - deva ser repudiado como
estratégia de construção de perspectiva histórica. Sobre o turismo, inclusive,
ainda que argumente pensando nas pessoas em geral, recordo o elogio de Georges
Duby às viagens, devotando a elas muito dos resultados conquistados em suas
obras[1]
Mas as frases finais de Larissa desconstruíram o incômodo,
atingindo em cheio as premissas que me distanciavam daquela interpretação de
culpa ou equívoco na visita. Atingiu em cheio inquietações que sustentam meu
entendimento sobre história.
“A
experimentação do mundo precede a razão. Adiante, mais do que isso: a razão é
feita da experimentação do mundo e o pensamento é feito do sentir. Ser afetado
pelo mundo, portanto, é pressuposto da construção do pensamento”[2]
Assim o geógrafo Cássio Hissa inicia sua ‘nota 4’ no livro
onde pondera criticamente sobre a produção acadêmica. Quando o li pela primeira
vez senti um enorme conforto, pois suas palavras acolhiam sentidos que esperava
desde a graduação, quando me recusava chamar a disciplina história de ciência
(preferia a palavra saber), pela impessoalidade que o termo acionava (aciona?)
nas pessoas.
De fato, as palavras de Hissa não acolhiam apenas a percepção
da ex-graduanda, mas se somavam às inquietações dos últimos anos, que impunham
considerar a articulação entre o ‘conteúdo temático’ da historiografia e o seu ‘como’
- sua didática, nos termos de Rüsen -; como também, sem desvalorizar meu
ofício, traziam indignação com a arrogância de uma suposta exclusividade do
historiador na fala sobre a experiência.
Segundo Rüsen, os “processos mentais genéricos e
elementares da interpretação do mundo e de si mesmo pelos homens” são um
“fenômeno vital”, ou seja, o que ele chama de ‘consciência histórica’ é algo
que participa da humanidade a despeito de uma ciência da história: as pessoas
criam perspectivas e referências para sua ação a partir das experiências no
tempo, independentemente de uma escolarização formal ou de um aprendizado
historiográfico[3].
Assinalação retumbante num mundo midiático, especialmente entre professores que
devem interpretar como historiadores e são obrigados dialogar com outras
discursividades sobre os temas que abordam, como o cinema e o romance
histórico, trazidas por seus alunos.
E não pensem que digo isso num sentimento de lástima,
numa fala corporativa de historiadores, pois é justo o contrário: por princípio
historiográfico repudio versões únicas e, ciente das desigualdades sociais,
repudio as hierarquias que o domínio do saber calcifica. Caminho, portanto,
justamente na celebração do diálogo dito acima, ou seja, no bem querer do
discurso historiográfico que escolhi como meu, mas na certeza e na
potencialidade dele não ser exclusivo. E ainda digo potencialidade, pois não
sou ingênua ao ponto de crer que nossos temas e nossos métodos estejam
apartados da vida.
E é justamente nesta chave que acredito que a visita a
Auschwitz, o contato com a vida e a morte que o lugar apresenta - suas paredes,
seu solo, os cabelos - não seja desrespeito, mas ao contrário, habilitação para
o respeito.
Na educação, há tempos defende-se a construção do
saber com significado, um saber que não esteja apenas na memorização, ou seja,
da matemática à língua pátria - certamente passando pela disciplina história -
a escolarização socializadora argumenta em prol de procedimentos que garantam a
produção de sentido, o que necessariamente passa pelo fazer, pela
experimentação e envolve a emoção.
Acredito que a perspectiva seja um dos elementos
axiais do ofício do historiador e ela não se realiza conosco permanecendo no
mesmo lugar, é necessário o deslocamento. Passar o pórtico de Auschwitz e
caminhar sobre os passos de soldados e prisioneiros na Segunda Guerra é
oportunidade de experimentar simultaneamente o deslocamento físico e temporal, sair
de seu próprio tempo e espaço e construir perspectiva.
Não conheço desconforto que não passe à reflexão.
Talvez a alegria nos extasie ao ponto de não questionarmos, mas o incômodo,
esse não: instalado, é trampolim para o pensamento. Há aqueles controlados, como
a dúvida sobre quem é o assassino numa narrativa ficcional, ou não controlados,
como o resultado do exame médico que fizemos em função de uma dor, mas, em um e
em outro, no cotidiano, nossos incômodos nos levam ao pensamento, à construção
de perspectivas. “Ser afetado pelo mundo, portanto, é pressuposto da construção
do pensamento”.
Deixo um comentário final sobre o guia. “Alguém tem que fazer”.
Não acredito que ele não seja/ esteja afetado, afinal, não sabemos seus sonhos
e pesadelos de antes ou de depois do seu trabalho, mas sabemos que a memória
lida com lembrança e esquecimento. De fato, o valor da lembrança deriva da
perspectiva que o esquecimento permite: devemos agradecer ao guia por ele
diariamente exercer o afastamento que torna possível a memória.
Eunícia Barros Barcelos Fernandes
PUC-Rio
PUC-Rio
[1]
DUBY, Georges. A história continua.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor/ Editora da UFRJ, 1993, cap IV.
[2]
HISSA, Carlos Viana. ‘Nota 4’, In: Entrenotas.
Compreensões de pesquisa. BH: Editora da UFMG, 2013.
[3] RÜSEN, Jörn. “Pragmática – a constituição do
pensamento históricos na vida prática”, IN: Razão
histórica. Brasília: Editora da UnB, 2001.