domingo, 9 de agosto de 2015

Sobre a emoção e o que fazemos dela



No último post, Larissa Rosa Corrêa tocou em vários pontos nodais do atual ofício do historiador, como a relação entre memória e história e a comercialização do passado: tudo muito importante para pensar e que estimula a conversa, mas vou me ater apenas no valor do desconforto como habilidade heurística, ou seja, a emoção como produtora de sentido histórico.


Larissa começou seu texto com expressões que diziam de um mal-estar na opção do ‘passeio’ por Auschwitz - onde o turismo seria uma banalização da tragédia - e atravessou a descrição da visitação ao campo de concentração conduzindo o leitor para um sentido de culpa ou de equívoco em fazer esse 'passeio'. Sua narrativa me incomodava... 


Incomodava porque as palavras sugeriam que não se devesse visitar lugares assim, como se a abstenção da visita fosse um modo de respeito aos que sofreram o holocausto, posições das quais discordo, pois não creio que a abstenção represente respeito, que a visitação seja afronta, nem tampouco que o turismo – apesar da comercialização que o envolve - deva ser repudiado como estratégia de construção de perspectiva histórica. Sobre o turismo, inclusive, ainda que argumente pensando nas pessoas em geral, recordo o elogio de Georges Duby às viagens, devotando a elas muito dos resultados conquistados em suas obras[1]


Mas as frases finais de Larissa desconstruíram o incômodo, atingindo em cheio as premissas que me distanciavam daquela interpretação de culpa ou equívoco na visita. Atingiu em cheio inquietações que sustentam meu entendimento sobre história. 


“A experimentação do mundo precede a razão. Adiante, mais do que isso: a razão é feita da experimentação do mundo e o pensamento é feito do sentir. Ser afetado pelo mundo, portanto, é pressuposto da construção do pensamento”[2]


Assim o geógrafo Cássio Hissa inicia sua ‘nota 4’ no livro onde pondera criticamente sobre a produção acadêmica. Quando o li pela primeira vez senti um enorme conforto, pois suas palavras acolhiam sentidos que esperava desde a graduação, quando me recusava chamar a disciplina história de ciência (preferia a palavra saber), pela impessoalidade que o termo acionava (aciona?) nas pessoas. 


De fato, as palavras de Hissa não acolhiam apenas a percepção da ex-graduanda, mas se somavam às inquietações dos últimos anos, que impunham considerar a articulação entre o ‘conteúdo temático’ da historiografia e o seu ‘como’ - sua didática, nos termos de Rüsen -; como também, sem desvalorizar meu ofício, traziam indignação com a arrogância de uma suposta exclusividade do historiador na fala sobre a experiência. 


Segundo Rüsen, os “processos mentais genéricos e elementares da interpretação do mundo e de si mesmo pelos homens” são um “fenômeno vital”, ou seja, o que ele chama de ‘consciência histórica’ é algo que participa da humanidade a despeito de uma ciência da história: as pessoas criam perspectivas e referências para sua ação a partir das experiências no tempo, independentemente de uma escolarização formal ou de um aprendizado historiográfico[3]. Assinalação retumbante num mundo midiático, especialmente entre professores que devem interpretar como historiadores e são obrigados dialogar com outras discursividades sobre os temas que abordam, como o cinema e o romance histórico, trazidas por seus alunos.


E não pensem que digo isso num sentimento de lástima, numa fala corporativa de historiadores, pois é justo o contrário: por princípio historiográfico repudio versões únicas e, ciente das desigualdades sociais, repudio as hierarquias que o domínio do saber calcifica. Caminho, portanto, justamente na celebração do diálogo dito acima, ou seja, no bem querer do discurso historiográfico que escolhi como meu, mas na certeza e na potencialidade dele não ser exclusivo. E ainda digo potencialidade, pois não sou ingênua ao ponto de crer que nossos temas e nossos métodos estejam apartados da vida.

E é justamente nesta chave que acredito que a visita a Auschwitz, o contato com a vida e a morte que o lugar apresenta - suas paredes, seu solo, os cabelos - não seja desrespeito, mas ao contrário, habilitação para o respeito. 


Na educação, há tempos defende-se a construção do saber com significado, um saber que não esteja apenas na memorização, ou seja, da matemática à língua pátria - certamente passando pela disciplina história - a escolarização socializadora argumenta em prol de procedimentos que garantam a produção de sentido, o que necessariamente passa pelo fazer, pela experimentação e envolve a emoção.


Acredito que a perspectiva seja um dos elementos axiais do ofício do historiador e ela não se realiza conosco permanecendo no mesmo lugar, é necessário o deslocamento. Passar o pórtico de Auschwitz e caminhar sobre os passos de soldados e prisioneiros na Segunda Guerra é oportunidade de experimentar simultaneamente o deslocamento físico e temporal, sair de seu próprio tempo e espaço e construir perspectiva.


Não conheço desconforto que não passe à reflexão. Talvez a alegria nos extasie ao ponto de não questionarmos, mas o incômodo, esse não: instalado, é trampolim para o pensamento. Há aqueles controlados, como a dúvida sobre quem é o assassino numa narrativa ficcional, ou não controlados, como o resultado do exame médico que fizemos em função de uma dor, mas, em um e em outro, no cotidiano, nossos incômodos nos levam ao pensamento, à construção de perspectivas. “Ser afetado pelo mundo, portanto, é pressuposto da construção do pensamento”.


Deixo um comentário final sobre o guia. “Alguém tem que fazer”. Não acredito que ele não seja/ esteja afetado, afinal, não sabemos seus sonhos e pesadelos de antes ou de depois do seu trabalho, mas sabemos que a memória lida com lembrança e esquecimento. De fato, o valor da lembrança deriva da perspectiva que o esquecimento permite: devemos agradecer ao guia por ele diariamente exercer o afastamento que torna possível a memória.

Eunícia Barros Barcelos Fernandes
PUC-Rio

[1] DUBY, Georges. A história continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor/ Editora da UFRJ, 1993, cap IV.
[2] HISSA, Carlos Viana. ‘Nota 4’, In: Entrenotas. Compreensões de pesquisa. BH: Editora da UFMG, 2013.
[3] RÜSEN, Jörn. “Pragmática – a constituição do pensamento históricos na vida prática”, IN: Razão histórica. Brasília: Editora da UnB, 2001.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Da “banalidade do mal” ao turismo como fetiche em Auschwitz: relatos de uma experiência nada banal



              Recentemente tive a oportunidade de visitar a Cracóvia, uma das cidades mais importantes da Polônia, reconhecida por sua riqueza cultural e protagonismo político. Cracóvia fica a 600 km de Berlim, localizada próximo ao vale da Silésia, na região sul do país. É possível chegar lá de carro, cruzando a fronteira entre a Alemanha e a Polônia, de avião ou de trem. Diariamente, hordas de turistas dirigem-se à Cracóvia atraídos pelas belezas da cidade. Além da rica arquitetura medieval, patrimônio mundial da Unesco desde 1978, Cracóvia é também a cidade do papa João Paulo II. Foi lá que Karol Wojtyla se destacou como liderança religiosa anticomunista quando era ainda o bispo local e lutou pela construção de uma polêmica igreja no bairro stalinista Nowa Huta. É também a terra onde estudou Copérnico.
Ao atravessar o parque que cerca toda a área da Stare Miasto (Cidade Velha), logo nos deparamos com os anúncios dos roteiros oferecidos pelas agências de turismo local. São dezenas de atrativos: a fábrica de Oskar Schindler, as minas de sal de Wieliczka, passeios pelos vales verdejantes de Ojcow, o ghetto e finalmente Auschwitz! Eis então que surge a primeira sensação de desconforto. Um desconforto duplo para ser mais precisa. Estranhamento 1: “como podem fazer propaganda turística de um campo de concentração?”. Estranhamento 2: “eu li ghetto?”, me pergunto se seria correto utilizar o mesmo termo empregado pelos nazistas para delimitar o espaço onde aproximadamente 17 mil judeus foram enclausurados e depois enviados para os campos de concentração. É verdade que algumas agências de turismo prefe
rem anunciar “Jewish quarter”, mas são poucas.
Pouco antes, no carro, a caminho de Cracóvia, procurando mais informações sobre a cidade, leio no Wikipédia: “Por estar perto de Auschwitz, é muito comum turistas, ao visitarem a cidade, passarem o dia no mais famoso campo de concentração da Europa”. Foi então que surgiu a dúvida: deveríamos ceder aos apelos das agências de turismo e visitar ‘o mais famoso campo de concentração’? No entanto, recompondo os fatos após essa experiência, nos demos conta de que este desconforto já havia surgido antes mesmo da viagem ter iniciado. Foi ainda no Brasil que eu e meu companheiro compartilhamos de forma entusiasmada com uma colega judia o nosso roteiro de viagem, que incluía a passagem por Auschwitz. Ao que ela respondeu: “ah, sim, você vai ver onde os meus parentes foram assassinados”. Silêncio. Devo ainda acrescentar que já estando em Berlim, quando participávamos de um evento acadêmico, o desconforto reapareceu. Conversando com uma professora judia norte-americana, ela comentou não ver sentido em visitar um campo de concentração. Pouco a pouco então fomos nos dando conta do que significava visitar Auschwitz. Era apenas o início de uma reflexão que se apresenta para nós de forma ainda bastante incipiente sobre as experiências nos campos de concentração como lugares da memória. Daí a pergunta: um campo de concentração é visitável? E, em caso positivo, para que serve a visita? A mesma questão tem sido feita quando refletimos sobre as visitas turísticas nas favelas do Rio de Janeiro.[1] Sem dúvida, a comparação contribui para pensar nos diversos significados e propósitos dessas experiências.[2]
Não era a primeira vez que eu visitava um campo de concentração. Eu já havia conhecido o de Sachsenhausen, localizado nas proximidades de Berlim. Acho que exatamente por isso o meu estranhamento ao chegar em Auschwitz foi ainda maior. Em Berlim não há nenhum tipo de anúncio ou referência do campo de concentração nos pontos turísticos da cidade. Penso que por motivos óbvios os alemães não fariam disso um atrativo turístico.
Em Auschwitz, ao chegar nas proximidades do portão do campo de concentração, nos deparamos com uma infraestrutura bem montada para acomodar os visitantes. Ao lado, vários ônibus desembarcavam dezenas de turistas. Homens, mulheres, crianças, idosos e adultos, conversavam descontraidamente, falavam alto, riam, enquanto aguardavam o chamado do guia local. Confesso que já dominada por um terrível mal-estar, combinado com mau-humor por não poder optar pela visita individual e ter que me integrar ao grupo, cheguei a pensar: onde pensam que estão? Na fila da Disneylandia? Não é possível adentrar o local sozinho, a visita guiada é mandatória (há apenas um horário no dia em que é possível fazer o percurso de forma independente).
Quando finalmente o guia do nosso grupo fez o chamado para nos reunirmos, o forte incomodo que havia se instalado em mim se agravou. O guia falava baixo e parecia se expressar de forma mecânica. Adentramos no campo. Passamos pelo portão da entrada, o guia logo nos chama a atenção para a tétrica frase escrita no portão “Arbeit macht frei, em português “O trabalho liberta”. Passamos pela cozinha onde os nazistas costumavam comer ao som da música clássica tocada pelos prisioneiros e seguimos para os prédios onde abrigava o “consultório médico” utilizado para realização de “experimentos” científicos com mulheres judias e ciganas. Passamos por diversos prédios por onde sofreram milhares de vítimas da barbárie nazista. Montanhas de cabelos, sapatos, malas identificadas, panelas empilhadas e alguns pertences básicos expostos, objetos da dignidade e das vidas roubadas pelos nazistas. A seguir, longos corredores com fotos enquadradas dos presos e presas. Em cada retrato podíamos ler os nomes, a idade e a origem dessas pessoas. Perdida e atormentada em meio a tantas imagens, meu olhar fixou-se nas diversas expressões das mulheres retratadas. Como um olhar pode dizer tanta coisa? Lá pelas tantas, observei que o moral do grupo estava abalado, uns cansados, outros calados e resignados. Tinha ainda os atentos que miravam cada detalhe, havia também aqueles que queria tirar foto de tudo. Da montanha de cabelos ninguém ousou. O meu mau humor não cabia mais naquele lugar, só havia tristeza e silêncio. O meu olhar então voltou-se para o guia. Fiquei me perguntando como ele conseguia fazer esse trabalho. O que significava ter como local de trabalho um campo de concentração? Como ele conseguia percorrer diariamente e várias vezes ao dia o mesmo caminho repetindo relatos detalhados das atrocidades cometidas pelos nazistas? No final do percurso percebi que eu não era a única a pensar nos sentimentos do nosso guia. Uma indiana perguntou a ele quantas vezes fazia o percurso guiado e como se sentia. “Alguém tem que fazer”, respondeu o guia. Ao deixar o espaço e retomar a estrada que nos levaria para bem longe daquele lugar, tive a certeza de que ninguém retorna do portão “Arbeit macht frei” do mesmo jeito que entrou. E sim, ainda que o holocausto, assim como a miséria, tenha se tornado objeto de fetiche de um turismo que se dá de forma muitas vezes predatória, todos deveriam ver com os seus próprios olhos o que os seres humanos são capazes de fazer contra a própria humanidade. Afinal, há reflexões que apenas são formuladas por meio dos sentidos: o olhar, o cheiro e o toque. A emoção.


Larissa R. Corrêa, 
professora de História da PUC-Rio



[1] FREIRE-MEDEIROS, Bianca. Gringo na Laje: produção, circulação e consumo da favela turística. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.
[2] Ver exemplo na matéria intitulada: “Hotel de luxo simula favela para turistas experimentarem a pobreza”, disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/11/hotel-de-luxo-simula-favela-para-turistas-experimentarem-pobreza.html, acessado em 27 de julho de 2015.