Foram 4 dias de trabalho puxado e intenso,
quase 12 horas por dia, participando do II Seminário Internacional Histórias do
Pós-Abolição no Mundo Atlântico. Liderado pelo GT Emancipações e Pós-Abolição, da Anpuh, particularmente pensado e
dirigido por um grupo de historiadoras e historiadores negros, dentre os quais
alguns bem jovens, doutorados há pouco tempo, ou que ingressaram há pouco nas
universidades públicas como professores. Um seminário com chamada pública de
trabalhos, e mesas-redondas montadas com critérios de diversidade e
representatividade, contrapondo-se ao tradicional e engessado modelo de
seminário com “convidados ilustres” (embora tenha aparecido um ou outro com
essa postura… urgh). O comitê científico, “gênero-equilibrado”, era de perfil
também majoritariamente negro, com ampla representação não só regional, mas
também geracional. 27 painéis, com ao menos 4 trabalhos cada, 3 mesas-redondas,
além da Iniciação Científica: numa conta rápida umas 140 apresentações. Fico
muito agradecida ao destino por ter participado desse seminário. Lá estive em
função de uma demanda da direção da Casa Rui que julgava importante que
estivéssmos envolvidos na discussão crítica dos 130 anos de abolição. Agradeço
enormemente a acolhida de nossa instituição, e reafirmo o que disse na mesa:
temos na rua São Clemente muitas coisas preciosas, como um acervo público de
documentos, bibliotecas, patrimônio intelectual, mas nos faltam pesquisadores e
tecnólogos negros. Numa maratona, movida por extrema sede por aprender mais
daquelas experiências, devo ter assitido cerca de 50 pessoas, em diferentes
momentos da formação e trajetória, com trabalhos que resultam do que acho que
podemos chamar de revolução de paradigmas na produção do conhecimento sobre nós
mesmos e nossa história.
Revolução que não é silenciosa e
sim, ruidosa. Mas revolução pensada, gestada com cuidado e atenção, e que agora
precisa ser continuada. Se a ponta do iceberg é o ano de 2003, com o início
mais sistemático das ações afirmativas em diferentes áreas, a história dessa
revolução é bem anterior. Olhando a avalanche que nos assola a todos, e
buscando ajudar a segurar os pilares das políticas públicas de investimento em
educação e pesquisa, dentre as quais as cotas e a renovação dos currículos, é
inevitável lembrar da famosa metáfora do período imperial, Ação/Reação/Transação,
mas com outras direções políticas que não a famosa conciliação entre liberais e
conservadores. Porque não queremos o liberalismo com escravidão. A Ação que
vemos na mudança no perfil dos estudantes e profissionais, nas agendas de
pesquisa, para quem já era professor e pesquisador, vem cheia de potência. A Reação
é, ao invés de ir na direção oposta, e “parar o carro da revolução” (o que quer
que fosse um carro na época do Bernardo Pereira de Vasconcelos), tentar pular
pra dentro dele e seguir na luta antirracista. Aprendi que para o GT, diferente
do que eu própria tinha imaginado, não se trata só do período pós-abolição, entendido
cronologicamente. E que o conceito de “emancipações” busca lidar com
experiências e situações de diferentes épocas. Num mesmo painel, o vaqueiro
Raimundo, da Balaiada, falando do “povo de cor”, junto com as propostas
historiográficas de Beatriz Nascimento, e ainda as trajetórias de Clovis Moura
e Eduardo de Oliveira e Oliveira. Trabalhos de iniciação científica feitos com
maestria, questões relevantes, e sensibilidade política. Vocês sabiam que após
o fim da escravidão, mulheres mães, na região mais rica do Brasil (Vale do
Paraíba em SP), eram classificadas pelos juízes (alô poder judiciário,
discricionário e elitista, os menines da IC tão de olho em vocês) como “eram escravas
de sicrano” ou “pertenciam a fulano” – notem o verbo no passado imperfeito – e
se apropriavam de seus filhos, alegando que as mesmas não tinham capacidade ou
moralidade para cuidar dos mesmos? E que diante dos argumentos das mães, que
entravam em processos judiciais intermináveis, perpetuavam a apropriação? E as
diferentes formas e expressões dos associativismos negros, em tempos diferentes,
vocês conheciam seu alcance e dimensão? Que a lei que institui o ensino de
história e cultura afrobrasileira foi defendida por décadas? Que os portugueses
investem uma fortuna para construir um museu interativo sofisticadíssimo, no
Porto, onde os visitantes viajam num barco virtual, chegam a uma senzala e
encontram por lá … um singelo jogo de capoeira (fiquei chocada, eu sei, sou
ingênua demais). Que o famoso “Padrão
dos Descobrimentos” em Lisboa pode abrigar uma exposição chamada Racismo e
Cidadania que no fundo só faz enraizar o racismo, pois não discute as pautas
reais de quem o enfrenta? E a oposição entre trabalho escravo e trabalho livre,
como se mantém, ao considerar que já no século XX, moradores de Sergipe vão
trabalhar em enorme fábrica de tecidos na Bahia, em troca de praticamente nada?
Uma outra questão crucial que volta
e meia aparecia, talvez ainda sem uma formulação mais sistemática, mas que acho que é
a chave para novas mudanças conceituais, é a relação raça/classe. O fato do
seminário ter acontecido no espaço da Fundação Getúlio Vargas foi especialmente
significativo para explicitá-la. Um contraste gritante entre os engravatados,
brancos, engomados, em corredores aclimatados e atapetados, e a elegância majestosa
e colorida que ia para o nono andar. Numa das salas atapetadas e aclimatadas,
vi uma caixa de acrílico, lacrada, como uma urna, onde se lia “Avaliação dos
Professores”. Os alunos podem submeter ali, aparentemente, o que quiserem.
Donde se conclui que a cultura política para o debate e resolução de conflitos
pela conversa franca ou num debate aberto é zero. As jongueiras trouxeram um alento, mostrando
outros saberes e usos da palavra. O genocídio dos jovens negros pela polícia
(média de 20 assassinatos por semana em Salvador), a violência crescente a que
está exposta a comunidade quilombola do Bracuí, violência alimentada pelo
consumo de cocaína pelos milionários que vão para suas ilhas, praias
particulares e mansões em Angra dos Reis, apontam “A liberdade não ficou do
nosso jeito, quero nossa liberdade, cadê nossos direitos?”. É tão desesperador
quando buscamos combater o racismo junto com a perspectiva de quem o enfrenta
diretamente, que só mesmo uma revolução.
Ivana Stolze Lima (Casa Rui Barbosa e PUC-Rio)