segunda-feira, 14 de setembro de 2015

A história que é pública


            O Vale do Paraíba e o tempo presente: a produção de história pública na formação do grande público sobre a escravidão no Brasil, significou bem mais que uma dissertação para o curso de mestrado. Significou realizar o movimento de olhar para a produção de história de forma diferente do que eu, em particular, havia olhado até então. Digo isso, porque ao longo da minha trajetória acadêmica, o meu entendimento sobre produção de história esteve sempre direcionado às produções historiográficas, aos estudos e reflexões realizados por acadêmicos renomados, aos trabalhos de pesquisa, entre outros. Tudo isso, sem dúvda, tem seu valor, mérito e importância, afinal, a história é uma ciência, que não deve, no entanto, estar direcionada somente aos seus pares, tão pouco restrita a um espaço. Deve estar em circulação, em debate com os diferentes públicos e nos mais variados lugares. Caso contrário, para que nos serviria a história? Portanto, o diálogo entre a história pública e a história acadêmica deve não apenas existir, mas coexistir.
Com frequência, os debates historiográficos sobre história pública se esforçam em delimitar significados e discutir de que forma tais trabalhos podem contribuir para a formação histórica de grupos e indivíduos, bem como delimitar o papel do historiador nesse processo. Para Sara Albieri, historiadora da USP, tornar a história pública é o mesmo que tornar irrestrito o acesso ao conhecimento sobre fatos e contextos históricos, ou seja, é possibilitar o entendimento sobre os diferentes fatos e contextos históricos contribuindo para que grupos e indivíduos cada vez mais tenham consciência de si no mundo e para o mundo. Há de se pensar a história pública como uma ferramenta capaz de estimular mudanças político-sociais, como um mecanismo que possibilita a grupos e indivíduos problematizarem o mundo em que vivem e influenciarem na construção de um aparato legislativo mais justo e menos desigual, por exemplo. O racismo institucionalizado e refletido em ações políticas como a redução da maioridade penal; as frágeis políticas de habitação que atingem diretamente a população negra, entre outros, são exemplos que mostram a urgência em sensibilizar a consciência histórica do grande público através de trabalhos interessados em apresentar contextos traumáticos, como o da escravidão, de forma problematizada e como um passado ainda presente.
Todas essas questões estiveram presentes ao longo da pesquisa para o mestrado, que buscou analisar os discursos referentes à escravidão construídos no tempo presente por guias e proprietários de fazendas localizadas no Vale do Paraíba fluminense. Através das visitas guiadas, os turistas têm acesso à narrativas orais e visuais, que buscam contar o passado histórico cafeeiro no qual as propriedades estiveram inseridas. Ao longo de mais de um ano de pesquisa, tive contato com as visitas guiadas das fazendas Ponte Alta, Taquara e Arvoredo, em Barra do Piraí/RJ, Florença, em Conservatória/RJ, e São Luís da Boa Sorte, em Vassouras/RJ, além de conversas e entrevistas com proprietários, pesquisadores e guias turísticos da região. O turismo histórico cultural se tornou cenário para as visitas guiadas e contribuiu para a movimentação da economia na região, além de possibilitar custear parte dos gastos com a manutenção dessas propriedades. Mas não só isso. O turismo histórico contribuiu para que essas fazendas tivessem no tempo presente uma função, a de explorar o passado histórico do Vale e fazer com que este circule entre a sociedade.
As narrativas apresentadas pelo conjunto de fazendas são variadas, embora a ideia de um passado cafeeiro opulente e grandioso esteja presente em cada discurso. Alguns proprietários estimam pela participação de pesquisadores e historiadores na organização de visitas e saraus; outros se restringem a contratação de guias turísticos para organizar a atividade e recepcionar os visitantes. Independente disso, o interessante é que em todas as visitas guiadas a consulta a documentos, pesquisadores e historiadores foi mencionada como uma prática para a construção das narrativas. E o que se discute aqui não é a polêmica da veracidade disso, mas o fato de que a história e o historiador aparecem como legitimadores de trabalhos voltados para o grande público. Foi interessante também notar as representações que são feitas sobre a escravidão, o africano e seus descendentes. O Restaurante da Senzala, administrado pela fazenda Taquara, explora com intensidade um passado de escravidão servil ao recepcionar os clientes com garçons e garçonetes negras, vestidas de branco, no espaço da antiga senzala doméstica, no subsolo. Lindas pratarias, decoração aconchegante, confortáveis mobílias, comidas deliciosas. Muito requinte e conforto como nos tempos do barão, familiares, convidados e escravarias. Mas, quais os efeitos em representar a gente negra, nos dias de hoje, a partir das mazelas de um passado tão recente e muito presente, como o da escravidão?
            O cuidado com as representações, sobretudo, no que diz respeito a sujeitos e contextos ligados a passados traumáticos como o da escravidão é mais que necessário. Deve ser ponto de partida para a produção de qualquer trabalho que pretenda de fato contribuir para a formação histórica da sociedade. Ao longo do tempo, muitos discursos foram construídos, sobretudo no âmbito da histórica pública, com base na exibição da violência como característica principal do período escravista, o que contribuiu para a formação de uma cultura histórica acerca da escravidão e dos africanos quase que incapaz de apontar o protagonismo dos negros e as diferentes formas de resistência e relações que foram construídas dentro do sistema escravocrata. Não levanto a bandeira da omissão e do silenciamento da violência física e moral produzida pela escravidão, mas defendo a ideia de que cada vez mais a história pública, seja ela produzida dentro ou fora da escola, esteja interessada e fortemente preocupada em desconstruir estereótipos e colaborar para a formação de uma consciência histórica problematizada e, sem dúvida, estreitar os laços entre o que é produzido dentro e fora da academia é uma ação viabilizadora desse processo.
            Essa é uma problemática que nos convida a refletir sobre os usos da história pública e seus efeitos na formação da consciência histórica do grande público e, nesse sentido, atividades como as visitas guiadas, exposições em museus, documentários, teatro, desfiles de escola de samba, entre outras, assumem a responsabilidade de influenciar e contribuírem na construção de saberes sobre o passado histórico e na reflexão crítica sobre o presente. Há de se pensar sobre os agentes que atuam na produção de história pública e como atuam; quais os temas que estão sendo divulgados e de que forma essa divulgação ocorre. Isso não quer dizer que a história pública estará necessariamente sob monopólio de historiadores, tão pouco estará restrita a escolha de temáticas, mas é fundamental que o trabalho com o grande público tenha para além de qualidade, responsabilidade histórica.
            A história pública também tem seu papel como uma porta de entrada, nos dias de hoje, para a divulgação das pesquisas científicas e os entraves enfrentados por profissionais da área pelo reconhecimento da legitimidade daquilo que produzem. As críticas quase sempre estão pautadas na alegação de que aquilo que é produzido fora da academia, em geral, não está necessariamente preocupado em agregar qualidade, talvez porque muitos cursos de graduação e pós-graduação no país ainda estejam dialogando pouco com este campo. O debate em torno dos diferentes campos de atuação do historiador é importante e bastante atual. Primeiro, porque essa é uma discussão que reforça a necessidade de refletir sobre a função social da carreira de historiador, ou seja, pensar sobre o seu papel na sociedade dos dias de hoje. Este papel social está ligado, principalmente, a um alargamento dos campos de atuação do profissional da história, o que com frequência não ocorre em função de uma desvalorização curricular que se atribui aos trabalhos com a história pública e com a educação básica. Os próprios cursos de graduação incentivam muito pouco essa reflexão e pouco estimulam os graduandos a compreenderem a importância de agregar os saberes científicos com o que é produzido para o grande público e para estudantes escolares. Segundo, porque o campo do turismo histórico cultural vem crescendo com força ao longo do tempo e cada vez mais com o propósito de organizar eventos e atividades culturais cujas narrativas tragam informações e contextos que tenham embasamento. A atuação do historiador, nesse sentido, dará teor científico ao que está sendo produzido para o grande público e trará contribuições para a problematização das representações sobre o passado histórico.
            Com frequência, estudos e trabalhos voltados para a trajetória de africanos escravizados no país se multiplicam, o que evidencia uma crescente preocupação, nacional e internacional, com a divulgação da história e da memória de homens e mulheres mantidos aqui como escravos desde o período colonial. A historiografia sobre o tema vem crescendo bastante, e desde a década de 1980, se inclina fortemente nos debates em torno do protagonismo dos escravizados e na reflexão da dinâmica do sistema escravocrata no Brasil. Cada vez mais, os estudos acadêmicos ligados à escravidão analisam a experiência africana para além do trabalho e açoitamento, para além da submissão e coisificação do indivíduo, com o intuito de divulgar o sistema escravista a partir de sua complexidade e múltiplas facetas. Eu, enquanto historiadora, acredito que esse deve ser um movimento coeso entre as ambas as formas de produzir história. O diálogo deve ser simultâneo e os investimentos cada vez mais intensos. Afinal, de que adianta produzir história se não for para interferir nos diferentes “mundos”, nos diversos espaços, nas diversas concepções e olhares?

Caroline Reis,
Mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio.


domingo, 9 de agosto de 2015

Sobre a emoção e o que fazemos dela



No último post, Larissa Rosa Corrêa tocou em vários pontos nodais do atual ofício do historiador, como a relação entre memória e história e a comercialização do passado: tudo muito importante para pensar e que estimula a conversa, mas vou me ater apenas no valor do desconforto como habilidade heurística, ou seja, a emoção como produtora de sentido histórico.


Larissa começou seu texto com expressões que diziam de um mal-estar na opção do ‘passeio’ por Auschwitz - onde o turismo seria uma banalização da tragédia - e atravessou a descrição da visitação ao campo de concentração conduzindo o leitor para um sentido de culpa ou de equívoco em fazer esse 'passeio'. Sua narrativa me incomodava... 


Incomodava porque as palavras sugeriam que não se devesse visitar lugares assim, como se a abstenção da visita fosse um modo de respeito aos que sofreram o holocausto, posições das quais discordo, pois não creio que a abstenção represente respeito, que a visitação seja afronta, nem tampouco que o turismo – apesar da comercialização que o envolve - deva ser repudiado como estratégia de construção de perspectiva histórica. Sobre o turismo, inclusive, ainda que argumente pensando nas pessoas em geral, recordo o elogio de Georges Duby às viagens, devotando a elas muito dos resultados conquistados em suas obras[1]


Mas as frases finais de Larissa desconstruíram o incômodo, atingindo em cheio as premissas que me distanciavam daquela interpretação de culpa ou equívoco na visita. Atingiu em cheio inquietações que sustentam meu entendimento sobre história. 


“A experimentação do mundo precede a razão. Adiante, mais do que isso: a razão é feita da experimentação do mundo e o pensamento é feito do sentir. Ser afetado pelo mundo, portanto, é pressuposto da construção do pensamento”[2]


Assim o geógrafo Cássio Hissa inicia sua ‘nota 4’ no livro onde pondera criticamente sobre a produção acadêmica. Quando o li pela primeira vez senti um enorme conforto, pois suas palavras acolhiam sentidos que esperava desde a graduação, quando me recusava chamar a disciplina história de ciência (preferia a palavra saber), pela impessoalidade que o termo acionava (aciona?) nas pessoas. 


De fato, as palavras de Hissa não acolhiam apenas a percepção da ex-graduanda, mas se somavam às inquietações dos últimos anos, que impunham considerar a articulação entre o ‘conteúdo temático’ da historiografia e o seu ‘como’ - sua didática, nos termos de Rüsen -; como também, sem desvalorizar meu ofício, traziam indignação com a arrogância de uma suposta exclusividade do historiador na fala sobre a experiência. 


Segundo Rüsen, os “processos mentais genéricos e elementares da interpretação do mundo e de si mesmo pelos homens” são um “fenômeno vital”, ou seja, o que ele chama de ‘consciência histórica’ é algo que participa da humanidade a despeito de uma ciência da história: as pessoas criam perspectivas e referências para sua ação a partir das experiências no tempo, independentemente de uma escolarização formal ou de um aprendizado historiográfico[3]. Assinalação retumbante num mundo midiático, especialmente entre professores que devem interpretar como historiadores e são obrigados dialogar com outras discursividades sobre os temas que abordam, como o cinema e o romance histórico, trazidas por seus alunos.


E não pensem que digo isso num sentimento de lástima, numa fala corporativa de historiadores, pois é justo o contrário: por princípio historiográfico repudio versões únicas e, ciente das desigualdades sociais, repudio as hierarquias que o domínio do saber calcifica. Caminho, portanto, justamente na celebração do diálogo dito acima, ou seja, no bem querer do discurso historiográfico que escolhi como meu, mas na certeza e na potencialidade dele não ser exclusivo. E ainda digo potencialidade, pois não sou ingênua ao ponto de crer que nossos temas e nossos métodos estejam apartados da vida.

E é justamente nesta chave que acredito que a visita a Auschwitz, o contato com a vida e a morte que o lugar apresenta - suas paredes, seu solo, os cabelos - não seja desrespeito, mas ao contrário, habilitação para o respeito. 


Na educação, há tempos defende-se a construção do saber com significado, um saber que não esteja apenas na memorização, ou seja, da matemática à língua pátria - certamente passando pela disciplina história - a escolarização socializadora argumenta em prol de procedimentos que garantam a produção de sentido, o que necessariamente passa pelo fazer, pela experimentação e envolve a emoção.


Acredito que a perspectiva seja um dos elementos axiais do ofício do historiador e ela não se realiza conosco permanecendo no mesmo lugar, é necessário o deslocamento. Passar o pórtico de Auschwitz e caminhar sobre os passos de soldados e prisioneiros na Segunda Guerra é oportunidade de experimentar simultaneamente o deslocamento físico e temporal, sair de seu próprio tempo e espaço e construir perspectiva.


Não conheço desconforto que não passe à reflexão. Talvez a alegria nos extasie ao ponto de não questionarmos, mas o incômodo, esse não: instalado, é trampolim para o pensamento. Há aqueles controlados, como a dúvida sobre quem é o assassino numa narrativa ficcional, ou não controlados, como o resultado do exame médico que fizemos em função de uma dor, mas, em um e em outro, no cotidiano, nossos incômodos nos levam ao pensamento, à construção de perspectivas. “Ser afetado pelo mundo, portanto, é pressuposto da construção do pensamento”.


Deixo um comentário final sobre o guia. “Alguém tem que fazer”. Não acredito que ele não seja/ esteja afetado, afinal, não sabemos seus sonhos e pesadelos de antes ou de depois do seu trabalho, mas sabemos que a memória lida com lembrança e esquecimento. De fato, o valor da lembrança deriva da perspectiva que o esquecimento permite: devemos agradecer ao guia por ele diariamente exercer o afastamento que torna possível a memória.

Eunícia Barros Barcelos Fernandes
PUC-Rio

[1] DUBY, Georges. A história continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor/ Editora da UFRJ, 1993, cap IV.
[2] HISSA, Carlos Viana. ‘Nota 4’, In: Entrenotas. Compreensões de pesquisa. BH: Editora da UFMG, 2013.
[3] RÜSEN, Jörn. “Pragmática – a constituição do pensamento históricos na vida prática”, IN: Razão histórica. Brasília: Editora da UnB, 2001.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Da “banalidade do mal” ao turismo como fetiche em Auschwitz: relatos de uma experiência nada banal



              Recentemente tive a oportunidade de visitar a Cracóvia, uma das cidades mais importantes da Polônia, reconhecida por sua riqueza cultural e protagonismo político. Cracóvia fica a 600 km de Berlim, localizada próximo ao vale da Silésia, na região sul do país. É possível chegar lá de carro, cruzando a fronteira entre a Alemanha e a Polônia, de avião ou de trem. Diariamente, hordas de turistas dirigem-se à Cracóvia atraídos pelas belezas da cidade. Além da rica arquitetura medieval, patrimônio mundial da Unesco desde 1978, Cracóvia é também a cidade do papa João Paulo II. Foi lá que Karol Wojtyla se destacou como liderança religiosa anticomunista quando era ainda o bispo local e lutou pela construção de uma polêmica igreja no bairro stalinista Nowa Huta. É também a terra onde estudou Copérnico.
Ao atravessar o parque que cerca toda a área da Stare Miasto (Cidade Velha), logo nos deparamos com os anúncios dos roteiros oferecidos pelas agências de turismo local. São dezenas de atrativos: a fábrica de Oskar Schindler, as minas de sal de Wieliczka, passeios pelos vales verdejantes de Ojcow, o ghetto e finalmente Auschwitz! Eis então que surge a primeira sensação de desconforto. Um desconforto duplo para ser mais precisa. Estranhamento 1: “como podem fazer propaganda turística de um campo de concentração?”. Estranhamento 2: “eu li ghetto?”, me pergunto se seria correto utilizar o mesmo termo empregado pelos nazistas para delimitar o espaço onde aproximadamente 17 mil judeus foram enclausurados e depois enviados para os campos de concentração. É verdade que algumas agências de turismo prefe
rem anunciar “Jewish quarter”, mas são poucas.
Pouco antes, no carro, a caminho de Cracóvia, procurando mais informações sobre a cidade, leio no Wikipédia: “Por estar perto de Auschwitz, é muito comum turistas, ao visitarem a cidade, passarem o dia no mais famoso campo de concentração da Europa”. Foi então que surgiu a dúvida: deveríamos ceder aos apelos das agências de turismo e visitar ‘o mais famoso campo de concentração’? No entanto, recompondo os fatos após essa experiência, nos demos conta de que este desconforto já havia surgido antes mesmo da viagem ter iniciado. Foi ainda no Brasil que eu e meu companheiro compartilhamos de forma entusiasmada com uma colega judia o nosso roteiro de viagem, que incluía a passagem por Auschwitz. Ao que ela respondeu: “ah, sim, você vai ver onde os meus parentes foram assassinados”. Silêncio. Devo ainda acrescentar que já estando em Berlim, quando participávamos de um evento acadêmico, o desconforto reapareceu. Conversando com uma professora judia norte-americana, ela comentou não ver sentido em visitar um campo de concentração. Pouco a pouco então fomos nos dando conta do que significava visitar Auschwitz. Era apenas o início de uma reflexão que se apresenta para nós de forma ainda bastante incipiente sobre as experiências nos campos de concentração como lugares da memória. Daí a pergunta: um campo de concentração é visitável? E, em caso positivo, para que serve a visita? A mesma questão tem sido feita quando refletimos sobre as visitas turísticas nas favelas do Rio de Janeiro.[1] Sem dúvida, a comparação contribui para pensar nos diversos significados e propósitos dessas experiências.[2]
Não era a primeira vez que eu visitava um campo de concentração. Eu já havia conhecido o de Sachsenhausen, localizado nas proximidades de Berlim. Acho que exatamente por isso o meu estranhamento ao chegar em Auschwitz foi ainda maior. Em Berlim não há nenhum tipo de anúncio ou referência do campo de concentração nos pontos turísticos da cidade. Penso que por motivos óbvios os alemães não fariam disso um atrativo turístico.
Em Auschwitz, ao chegar nas proximidades do portão do campo de concentração, nos deparamos com uma infraestrutura bem montada para acomodar os visitantes. Ao lado, vários ônibus desembarcavam dezenas de turistas. Homens, mulheres, crianças, idosos e adultos, conversavam descontraidamente, falavam alto, riam, enquanto aguardavam o chamado do guia local. Confesso que já dominada por um terrível mal-estar, combinado com mau-humor por não poder optar pela visita individual e ter que me integrar ao grupo, cheguei a pensar: onde pensam que estão? Na fila da Disneylandia? Não é possível adentrar o local sozinho, a visita guiada é mandatória (há apenas um horário no dia em que é possível fazer o percurso de forma independente).
Quando finalmente o guia do nosso grupo fez o chamado para nos reunirmos, o forte incomodo que havia se instalado em mim se agravou. O guia falava baixo e parecia se expressar de forma mecânica. Adentramos no campo. Passamos pelo portão da entrada, o guia logo nos chama a atenção para a tétrica frase escrita no portão “Arbeit macht frei, em português “O trabalho liberta”. Passamos pela cozinha onde os nazistas costumavam comer ao som da música clássica tocada pelos prisioneiros e seguimos para os prédios onde abrigava o “consultório médico” utilizado para realização de “experimentos” científicos com mulheres judias e ciganas. Passamos por diversos prédios por onde sofreram milhares de vítimas da barbárie nazista. Montanhas de cabelos, sapatos, malas identificadas, panelas empilhadas e alguns pertences básicos expostos, objetos da dignidade e das vidas roubadas pelos nazistas. A seguir, longos corredores com fotos enquadradas dos presos e presas. Em cada retrato podíamos ler os nomes, a idade e a origem dessas pessoas. Perdida e atormentada em meio a tantas imagens, meu olhar fixou-se nas diversas expressões das mulheres retratadas. Como um olhar pode dizer tanta coisa? Lá pelas tantas, observei que o moral do grupo estava abalado, uns cansados, outros calados e resignados. Tinha ainda os atentos que miravam cada detalhe, havia também aqueles que queria tirar foto de tudo. Da montanha de cabelos ninguém ousou. O meu mau humor não cabia mais naquele lugar, só havia tristeza e silêncio. O meu olhar então voltou-se para o guia. Fiquei me perguntando como ele conseguia fazer esse trabalho. O que significava ter como local de trabalho um campo de concentração? Como ele conseguia percorrer diariamente e várias vezes ao dia o mesmo caminho repetindo relatos detalhados das atrocidades cometidas pelos nazistas? No final do percurso percebi que eu não era a única a pensar nos sentimentos do nosso guia. Uma indiana perguntou a ele quantas vezes fazia o percurso guiado e como se sentia. “Alguém tem que fazer”, respondeu o guia. Ao deixar o espaço e retomar a estrada que nos levaria para bem longe daquele lugar, tive a certeza de que ninguém retorna do portão “Arbeit macht frei” do mesmo jeito que entrou. E sim, ainda que o holocausto, assim como a miséria, tenha se tornado objeto de fetiche de um turismo que se dá de forma muitas vezes predatória, todos deveriam ver com os seus próprios olhos o que os seres humanos são capazes de fazer contra a própria humanidade. Afinal, há reflexões que apenas são formuladas por meio dos sentidos: o olhar, o cheiro e o toque. A emoção.


Larissa R. Corrêa, 
professora de História da PUC-Rio



[1] FREIRE-MEDEIROS, Bianca. Gringo na Laje: produção, circulação e consumo da favela turística. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.
[2] Ver exemplo na matéria intitulada: “Hotel de luxo simula favela para turistas experimentarem a pobreza”, disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/11/hotel-de-luxo-simula-favela-para-turistas-experimentarem-pobreza.html, acessado em 27 de julho de 2015.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

7 a 1: o peso da história

            O primeiro aniversário da derrota da seleção brasileira no jogo contra a Alemanha nos fez revisitar um trauma recente. Além de levar os jornais a publicar a opinião de ex-jogadores, técnicos e jornalistas sobre as causas do desastre, a data fez com que algumas redes de televisão voltassem a exibir a partida. Como historiador, dificilmente eu poderia ter algo a dizer em um debate pautado pela discussão sobre técnicas, táticas ou lógicas de gestão esportiva. A experiência de assistir novamente à partida sem a emoção do momento me fez ver, porém, que esse caso era diferente. Para além dos fatores elencados à exaustão por aqueles efetivamente envolvidos com o futebol na atualidade, uma das principais explicações para aquele resultado está no peso da história.
            Como qualquer torcedor sabe, história não ganha jogo. Um dos encantos do futebol está em contemplar a falta de lógica, que nos permite torcer para que um time como o Bangu possa vencer o Barcelona. Ainda assim, na Copa do Mundo de 2014 a seleção brasileira carregava o fardo da longa história de afirmação do jogo no Brasil, iniciada ainda nos últimos anos do século XIX. Por caminhos diversos, trilhados tanto pelos jovens que traziam de seus estudos na Europa o material para a prática do novo jogo quanto pelos marinheiros e estivadores anônimos que o praticavam ao seu modo nas regiões portuárias, o gosto pelo futebol rapidamente se espalhou entre diferentes grupos sociais. Se de início ele era apenas mais um dos muitos esportes de origem inglesa que se afirmavam nas cidades brasileiras, a década de 1910 já se notava a clara primazia do futebol sobre os demais no gosto do público.
Nos primeiros anos era como aprendizes que os brasileiros se colocavam frente aos times de outros países. “Nós perdemos porque era impossível deixar de perder”, escrevia João do Rio em 1908 depois de uma contundente derrota de um selecionado brasileiro frente ao argentino, pois a “noção helênica” do jogo dos adversários, herança da forte presença europeia na região do Rio da Prata, bastaria para explicar o resultado. Aos poucos, porém, o sucesso esportivo de jovens negros e pardos que fizeram do futebol um poderoso meio de ascensão social viria a mudar tais certezas. Ao conquistar nos campos um espaço que lutavam para alcançar na vida, esses jogadores afrodescendentes conseguiram com o tempo se fazer presentes em times antes restritos aos brancos. Como resultado, no início da década de 1930 eles já figuravam nos até então elitizados selecionados nacionais, que se abriam para jogadores como Leônidas da Silva e Domingos da Guia.
Foi a partir do sucesso desses jogadores que se afirmou, na Copa do Mundo de 1938, a imagem do “estilo brasileiro de jogar futebol, que arredonda e às vezes adoça o jogo inventado pelos ingleses”, nas palavras escritas naquele ano por Gilberto Freyre. Capaz de misturar harmonicamente a ginga e malemolência naturalmente atribuída aos afrodescendentes com a força e disciplina dos europeus, este estilo se tornaria uma das bases da afirmação de uma nova identidade para a nação, e um dos principais fatores do orgulho nacional.
A força dessa imagem, construída como resposta aos dilemas de uma sociedade marcada por desigualdades de diferentes naturezas, resultou em uma certeza poucas vezes questionada desde então: a da inequívoca superioridade dos brasileiros nos campos. Em 1938, quando ainda não existia a transmissão televisiva dos jogos, esta certeza fez com que os brasileiros atribuíssem a derrota para a Itália a um evidente roubo do juiz, embora ninguém pudesse enxerga-lo. Na Copa do Mundo seguinte, em 1950, o insucesso foi atribuído à falha individual de um jogador. Daí em diante, as marcantes vitórias do selecionado brasileiro em outras disputas só viriam a reafirmar esta certeza, que faria com que todas as eliminações seguintes fossem justificadas por fatores extraordinários – como farras boêmias patrocinadas pelos jogadores, um pênalti perdido por quem não costumava perdê-lo ou até mesmo fantasiosos esquemas de manipulação de resultados por parte de grandes multinacionais de material esportivo. Em condições normais, era claro que a vitória deveria ser brasileira.
Era o peso desta história que todo o Brasil carregava no momento em que se realizava novamente aqui uma Copa do Mundo. Ele se manifesta diariamente em muitas das tragédias nacionais encobertas pelo mito construído nos campos – como o racismo negado por aqueles que acreditam na força homogeneizadora de nossa identidade mestiça ou a enorme desigualdade encoberta por esta afirmação harmoniosa de uma sociedade sem conflitos. Na partida disputada no Mineirão naquele 8 de julho, no entanto, a fragilidade desta imagem se mostrou de maneira palpável. Jogando de igual para igual contra os alemães até sofrer o primeiro gol, o time brasileiro a sentiu frente à ameaça de uma derrota em casa que certamente teria culpados. Paralisados, pareciam contar com a força de uma camisa que bastaria para conquistar as vitórias, como sugerido recentemente pela CBF em uma rede social. Por mais que tenham razão todos que clamam pela reformulação das categorias de base do futebol brasileiro e pela necessidade de renovação técnica e tática, a humilhante derrota parece ter também relação com o peso desta ilusão – que estava naquele dia nas mãos de Júlio Cesar, nas pernas de David Luiz, nos pés de Fred e na cabeça de milhões de brasileiros. 

                                                                                                         Leonardo Pereira (PUC-Rio)