Reina
a balbúrdia nas universidades da Bruzundanga. Ou ao menos é o que pensam sobre
elas algumas autoridades governamentais. É preciso respeitar a liberdade de
expressão. A bronca é livre, assim como a desinformação e a ignorância. Quase
toda a pesquisa científica feita no país acontece em universidades
particulares. O presidente e seus comandados podem ordenar o fim da sociologia,
da filosofia, da astrologia e do que mais houver que lhes der na veneta. Pesquisas
mostram que cigarro não faz mal à saúde. O aquecimento global é engodo marxista
(Gramsci) para frear o desenvolvimento do capitalismo. O evolucionismo é uma
hipótese tão plausível quanto Adão, Eva, o paraíso e a maçã. Nunca houve
ditadura na América Latina. Na Bruzundanga, nem ditabranda. A Terra é
plana.
Ó
vida, ó céus, ó azar! Explicar tudo cansa, mas vamos lá, começando pelo começo
(sic). Liberdade de expressão e liberdade acadêmica são conceitos diferentes. A
segunda depende da primeira, mas é cousa doutro naipe. A liberdade de expressão
se exerce no espaço público de forma ampla. É o direito de deitar falação sobre
aquilo que se sabe ou não, que se ama ou odeia, sobre aquilo do qual pouco se
lhe dá, que se deseja, que dá paúra, e assim por diante. Direito robusto,
coqueluche do nosso tempo, defendido com galhardia por todos, mais eficazmente
ainda por grandes empresas que exploram certos serviços tecnológicos globais.
Algumas democracias do mundo impõem restrições a esse direito nosso de cada
dia, para evitar que se berre em alto e bom som o desejo de exterminar outra
raça, ou fiéis doutra religião, ou gente de orientação sexual diferente da
nossa, etc. Mas a exceção não faz a regra. O que mais vale em democracias é o
direito de cada um dizer o que lhe vem à cachola.
Liberdade
acadêmica é o conjunto de condições institucionais que garantem a
pesquisadores, professores e estudantes a produção de conhecimento com
autonomia e independência –quer dizer, livre da ingerência do Estado e de
outros grupos de interesse existentes na sociedade. É um ideal, um objetivo em
permanente construção, um direito que se defende no dia a dia das instituições
de ensino e pesquisa. A liberdade acadêmica diz respeito a enunciados de
conhecimento, à prerrogativa de exprimir livremente o resultado de pesquisas
científicas submetidas a critérios de demonstração e prova aceitos pelas
comunidades de pesquisadores de cada disciplina, sujeitas à crítica dos pares,
aos erros, às correções e acréscimos que estão no centro desse tipo de
atividade. Há um mundo de regras e exigências que precisam ser satisfeitas para
que se chegue a dizer algo cientificamente relevante. Não se chega lá sem a
formação adequada obtida em cursos de graduação, mestrado, doutorado. Sem lidar
com as questões feitas por bancas de titulação e de concurso; sem enfrentar o
crivo de pareceristas de periódicos especializados, de editoras.
Como
se vê, liberdade de expressão e liberdade acadêmica são cousas muito diversas.
As universidades são espaços que, por sua natureza, acolhem e abraçam a livre
expressão de ideias. A liberdade de expressão é valor crucial da vida
universitária. Todavia, o exercício de tal direito nas universidades não cria
prerrogativas que são decorrentes apenas da liberdade acadêmica. Achar que a Terra é plana não ajudará ninguém a se tornar bacharel em geografia. Não há
biólogo que derive do criacionismo hipóteses a serem testadas nos laboratórios
universitários. Ninguém será aprovado num concurso público a uma cadeira na
área de história negando o fato de haverem ocorrido ditaduras militares na
América Latina durante a chamada Guerra Fria. E assim por diante. A liberdade
de expressão, por si só, não senta nos bancos universitários. O valor central
nesses espaços é o conhecimento produzido em ambiente de liberdade acadêmica.
Os
extremismos de direita, mundo afora, ignoram a diferença básica entre liberdade
de expressão e liberdade acadêmica. Por malícia ou desconhecimento, o governo
da Bruzundanga parece pensar que pode ditar o que se ensinará nas escolas e
universidades do país. Não pode. Não passarão. Instituições de ensino e
pesquisa são lugares de conhecimento e formação –exigem tempo, paciência,
determinação, obedecem a regras e protocolos rigorosos. As universidades
públicas brasileiras pertencem à sociedade. Foram construídas em décadas de
trabalho por cientistas, professores, estudantes e funcionários. Expandiram-se
nos últimos anos. Existem em maior número, estão maiores e melhores. Na medida
do possível, tornaram-se mais inclusivas, trouxeram a sociedade para dentro
delas. Tem muito a melhorar, como tem de ser, como é da natureza delas. Serão
defendidas pela sociedade brasileira. E contarão com ampla e irrestrita
solidariedade da comunidade acadêmica internacional.
Sidney Chalhoub
Professor of History,
Harvard University
Professor Titular
Colaborador, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)