terça-feira, 17 de abril de 2018

Lula, os passados e os futuros da experiência democrática no Brasil

                                                                                   
O ato político que teve lugar na manhã do sábado 7 de abril pode ser visto como um resultado imprevisto de um mandado de prisão expedido às pressas. Com certeza, para muitos, foi um resultado indesejado. Deve ter funcionado como um lembrete ao juiz que o assinou (e a outros agentes públicos) de que suas decisões costumam incidir na realidade de formas que insistem em não corresponder às suas intenções e projetos. Este foi o final provisório de um processo judicial  manchado por arbitrariedades, marcado uma indissimulável perseguição a uma força política específica, e alimentado pelas fantasias de seu banimento total.

            Essas circunstâncias só aumentam a importância da rara manifestação política do sábado 7 de abril. Em frente ao edifício da sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, Lula falou a uma emocionada multidão que lembrava aquelas outras multidões, há quarenta anos atrás. O discurso em que anunciou sua decisão de se apresentar ao juiz para “transferir a responsabilidade” aos que o perseguem, frustrando aqueles que esperavam vê-lo no papel de um réu acuado, se tornou expressão da força do capital político que surpreendentemente continua associado à sua trajetória e ao PT, resistente à longa perseguição midiática e judicial. A presença de presidenciáveis de dois outros partidos políticos de esquerda para apoiá-lo e ser levantados pela sua mão como o futuro da esquerda no Brasil reforça este sentido político.

            Ao se dirigir a este público, Lula fez um balanço de sua aprendizagem política, e com isso, também da experiência da esquerda brasileira nos últimos quarenta anos. Seu ponto de partida foram as greves de 1978-1980, momento em que a afirmação da autonomia e da capacidade histórica da classe trabalhadora brasileira surgiu como um elemento novo aos olhos dos contemporâneos. As greves questionaram o lugar-comum das explicações acadêmicas e políticas daquele momento de que a classe trabalhadora, derrotada pelo golpe de 1964, era débil, vulnerável a cooptações e práticas populistas, e terminava sempre presa do Estado e de partidos políticos. Num momento de desgaste da ditadura militar, os chamados novos movimentos sociais ampliavam o campo da política, conectando-a com a vida cotidiana.

            O surgimento de Lula como liderança sindical no final dos anos 70 marcou o começo de uma estratégia política baseada na construção de uma esquerda democrática no Brasil.  Nas décadas seguintes, o protagonismo do PT foi determinante no período mais longo em que um projeto de esquerda conseguiu ser parte da vida democrática institucional na história do Brasil.

            Em seu discurso do dia 7 de abril, Lula interveio ativamente nos sentidos em disputa daquela história. Uma vez mais, recordou sua experiência como presidente do sindicato durante a ditadura militar brasileira. Cercado de alguns dos principais protagonistas daquela experiência  de organização política, como os padres das comunidades eclesiásticas de base, além dos próprios operários metalúrgicos que se dirigiram ao sindicato ao terminar o turno da tarde, Lula destacou dois eixos de sua formação política: por um lado, os encontros entre intelectuais e operários que marcaram a formação da CUT e do PT; por outro, a aprendizagem da greve.

            O relato se deteve em uma das greves de 1979, na que Lula e a direção sindical, ao avaliar não existir organização suficiente para manter o conflito, não conseguiu convencer suas bases a entrar num acordo com os patrões da indústria automobilística, “o melhor possível”, em sua opinião: era 15% de aumento, sem perder férias nem o 13o salário. Terminaram pagando o preço de passar um ano sendo vistos como pelegos pelos operários. No ano seguinte, a decisão da greve seguiu a vontade da base: a nova paralisação foi sustentada por uma “densa trama relacional” construída nos bairros, nas assembleias e nas igrejas, e expressado em piquetes, que de resto não eram tão diferentes aos que existiram antes de 1964. (ver Paulo Fontes e Francisco Macedo, “Piquetes como repertório: organização operária e redes sociais nas greves de 1957 e 1980”, Topoi, 18, 34, 2017). Derrotada depois de 41 penosos dias de luta, que incluíram a primeira prisão de Lula, a greve terminou sendo vitoriosa, já que permitiu construir a organização posterior. A analogia era dirigida à multidão que não o queria preso pela segunda vez: a prisão seria mais uma pequena derrota; um passo para construir a luta futura.

            Para além dessa intenção política imediata, a reavaliação de Lula dos ensinamentos da derrota de 1980 expõe um velho dilema que ganha atualidade e urgência: frente a um poder judiciário que se deixa amedrontar por ameaças militares de outros tipos e que não hesita em rasgar princípios constitucionais que sustentaram a estabilidade deste último período, como continuar apostando pela política democrática?      
      
Quando o discurso do moralismo anticorrupção tende a diminuir cada vez mais o lugar da política e ajuda a criar as condições para a violência fascista na vida cotidiana brasileira, Lula ratifica suas convicções de que  o PT “não nasceu para ser um partido revolucionário, nasceu para ser um partido democrático e levar a democracia às suas últimas consequências”. (A verdade vencerá, ebook, Ed. Boitempo, 2018)

            Historiadores são gente treinada para desconfiar das analogias históricas, que correm o risco de se tornar unívocas e simplificar processos que merecem ser analisados em seus matizes e complexidades. O PT de 2018 e Lula, aos 72 anos, estão muito distantes daquela experiência política que deslanchou em 1980. O caminho iniciado pela luta pela democracia e os direitos dos trabalhadores nos levou muito mais longe do que aqueles metalúrgicos/as e sociólogos/as que os acompanhavam jamais se atreveram a sonhar. Mas o ato do 7 de abril mostrou que a força e as dificuldades dessa experiência política da esquerda merecem ser entendidas, de forma rigorosa, sem concessões e sem condescendência, à luz da história peculiar de um dos países mais desiguais do planeta. Seria possível analisar também a derrota de uma prática de alternância democrática à luz daquela experiência e dessa aprendizagem?

            Uma resposta que reponha a velha oposição entre uma postura revolucionária e uma esquerda morna e negociadora, por exemplo, não condiz com a riqueza dessa experiência histórica. Ela não dá conta de descrever o que há de novo numa figura política que conseguiu se construir como o “único  mediador entre elite e massas”, o único que conseguiu reuni-las, por um tempo, em torno de um só projeto político, nas precisas palavras do sociólogo Leonardo Avritzer, (“A prisão do único mediador entre elites e massas no Brasil”, GGN, 06/04/2018).

    A trajetória de Lula, e suas próprias reflexões sobre ela, nos dá pistas para propor periodizações da construção de um campo de esquerda no último período democrático brasileiro. Ela terá que contemplar a combinação entre a afirmação da autonomia e da capacidade política da classe trabalhadora brasileira, terá que passar pela aposta da política democrática institucional, ponderando suas consequências, limites e conflitos. Em 2018, sua prisão e a ameaça de um candidato presidencial identificado com a extrema direita e com a ação de milícias paramilitares abrem um novo período de indeterminação. Por enquanto, podemos  ir tirando algumas lições de tudo isso. Entre elas, a de que as experiências históricas não deixam de informar e iluminar as futuras lutas de formas que sempre nos surpreendem, independente do que vemos, e do que não queremos ver.
Cristiana Schettini (CONICET/ IDAES-UNSAM)