terça-feira, 4 de agosto de 2015

Da “banalidade do mal” ao turismo como fetiche em Auschwitz: relatos de uma experiência nada banal



              Recentemente tive a oportunidade de visitar a Cracóvia, uma das cidades mais importantes da Polônia, reconhecida por sua riqueza cultural e protagonismo político. Cracóvia fica a 600 km de Berlim, localizada próximo ao vale da Silésia, na região sul do país. É possível chegar lá de carro, cruzando a fronteira entre a Alemanha e a Polônia, de avião ou de trem. Diariamente, hordas de turistas dirigem-se à Cracóvia atraídos pelas belezas da cidade. Além da rica arquitetura medieval, patrimônio mundial da Unesco desde 1978, Cracóvia é também a cidade do papa João Paulo II. Foi lá que Karol Wojtyla se destacou como liderança religiosa anticomunista quando era ainda o bispo local e lutou pela construção de uma polêmica igreja no bairro stalinista Nowa Huta. É também a terra onde estudou Copérnico.
Ao atravessar o parque que cerca toda a área da Stare Miasto (Cidade Velha), logo nos deparamos com os anúncios dos roteiros oferecidos pelas agências de turismo local. São dezenas de atrativos: a fábrica de Oskar Schindler, as minas de sal de Wieliczka, passeios pelos vales verdejantes de Ojcow, o ghetto e finalmente Auschwitz! Eis então que surge a primeira sensação de desconforto. Um desconforto duplo para ser mais precisa. Estranhamento 1: “como podem fazer propaganda turística de um campo de concentração?”. Estranhamento 2: “eu li ghetto?”, me pergunto se seria correto utilizar o mesmo termo empregado pelos nazistas para delimitar o espaço onde aproximadamente 17 mil judeus foram enclausurados e depois enviados para os campos de concentração. É verdade que algumas agências de turismo prefe
rem anunciar “Jewish quarter”, mas são poucas.
Pouco antes, no carro, a caminho de Cracóvia, procurando mais informações sobre a cidade, leio no Wikipédia: “Por estar perto de Auschwitz, é muito comum turistas, ao visitarem a cidade, passarem o dia no mais famoso campo de concentração da Europa”. Foi então que surgiu a dúvida: deveríamos ceder aos apelos das agências de turismo e visitar ‘o mais famoso campo de concentração’? No entanto, recompondo os fatos após essa experiência, nos demos conta de que este desconforto já havia surgido antes mesmo da viagem ter iniciado. Foi ainda no Brasil que eu e meu companheiro compartilhamos de forma entusiasmada com uma colega judia o nosso roteiro de viagem, que incluía a passagem por Auschwitz. Ao que ela respondeu: “ah, sim, você vai ver onde os meus parentes foram assassinados”. Silêncio. Devo ainda acrescentar que já estando em Berlim, quando participávamos de um evento acadêmico, o desconforto reapareceu. Conversando com uma professora judia norte-americana, ela comentou não ver sentido em visitar um campo de concentração. Pouco a pouco então fomos nos dando conta do que significava visitar Auschwitz. Era apenas o início de uma reflexão que se apresenta para nós de forma ainda bastante incipiente sobre as experiências nos campos de concentração como lugares da memória. Daí a pergunta: um campo de concentração é visitável? E, em caso positivo, para que serve a visita? A mesma questão tem sido feita quando refletimos sobre as visitas turísticas nas favelas do Rio de Janeiro.[1] Sem dúvida, a comparação contribui para pensar nos diversos significados e propósitos dessas experiências.[2]
Não era a primeira vez que eu visitava um campo de concentração. Eu já havia conhecido o de Sachsenhausen, localizado nas proximidades de Berlim. Acho que exatamente por isso o meu estranhamento ao chegar em Auschwitz foi ainda maior. Em Berlim não há nenhum tipo de anúncio ou referência do campo de concentração nos pontos turísticos da cidade. Penso que por motivos óbvios os alemães não fariam disso um atrativo turístico.
Em Auschwitz, ao chegar nas proximidades do portão do campo de concentração, nos deparamos com uma infraestrutura bem montada para acomodar os visitantes. Ao lado, vários ônibus desembarcavam dezenas de turistas. Homens, mulheres, crianças, idosos e adultos, conversavam descontraidamente, falavam alto, riam, enquanto aguardavam o chamado do guia local. Confesso que já dominada por um terrível mal-estar, combinado com mau-humor por não poder optar pela visita individual e ter que me integrar ao grupo, cheguei a pensar: onde pensam que estão? Na fila da Disneylandia? Não é possível adentrar o local sozinho, a visita guiada é mandatória (há apenas um horário no dia em que é possível fazer o percurso de forma independente).
Quando finalmente o guia do nosso grupo fez o chamado para nos reunirmos, o forte incomodo que havia se instalado em mim se agravou. O guia falava baixo e parecia se expressar de forma mecânica. Adentramos no campo. Passamos pelo portão da entrada, o guia logo nos chama a atenção para a tétrica frase escrita no portão “Arbeit macht frei, em português “O trabalho liberta”. Passamos pela cozinha onde os nazistas costumavam comer ao som da música clássica tocada pelos prisioneiros e seguimos para os prédios onde abrigava o “consultório médico” utilizado para realização de “experimentos” científicos com mulheres judias e ciganas. Passamos por diversos prédios por onde sofreram milhares de vítimas da barbárie nazista. Montanhas de cabelos, sapatos, malas identificadas, panelas empilhadas e alguns pertences básicos expostos, objetos da dignidade e das vidas roubadas pelos nazistas. A seguir, longos corredores com fotos enquadradas dos presos e presas. Em cada retrato podíamos ler os nomes, a idade e a origem dessas pessoas. Perdida e atormentada em meio a tantas imagens, meu olhar fixou-se nas diversas expressões das mulheres retratadas. Como um olhar pode dizer tanta coisa? Lá pelas tantas, observei que o moral do grupo estava abalado, uns cansados, outros calados e resignados. Tinha ainda os atentos que miravam cada detalhe, havia também aqueles que queria tirar foto de tudo. Da montanha de cabelos ninguém ousou. O meu mau humor não cabia mais naquele lugar, só havia tristeza e silêncio. O meu olhar então voltou-se para o guia. Fiquei me perguntando como ele conseguia fazer esse trabalho. O que significava ter como local de trabalho um campo de concentração? Como ele conseguia percorrer diariamente e várias vezes ao dia o mesmo caminho repetindo relatos detalhados das atrocidades cometidas pelos nazistas? No final do percurso percebi que eu não era a única a pensar nos sentimentos do nosso guia. Uma indiana perguntou a ele quantas vezes fazia o percurso guiado e como se sentia. “Alguém tem que fazer”, respondeu o guia. Ao deixar o espaço e retomar a estrada que nos levaria para bem longe daquele lugar, tive a certeza de que ninguém retorna do portão “Arbeit macht frei” do mesmo jeito que entrou. E sim, ainda que o holocausto, assim como a miséria, tenha se tornado objeto de fetiche de um turismo que se dá de forma muitas vezes predatória, todos deveriam ver com os seus próprios olhos o que os seres humanos são capazes de fazer contra a própria humanidade. Afinal, há reflexões que apenas são formuladas por meio dos sentidos: o olhar, o cheiro e o toque. A emoção.


Larissa R. Corrêa, 
professora de História da PUC-Rio



[1] FREIRE-MEDEIROS, Bianca. Gringo na Laje: produção, circulação e consumo da favela turística. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.
[2] Ver exemplo na matéria intitulada: “Hotel de luxo simula favela para turistas experimentarem a pobreza”, disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/11/hotel-de-luxo-simula-favela-para-turistas-experimentarem-pobreza.html, acessado em 27 de julho de 2015.

3 comentários:

  1. Muita vontade de conversar... Vou escrever e depois postar.
    :)

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  2. Muito interessante. Veja também o documentário da TV britânica: https://www.youtube.com/watch?v=rXJfRc_1TAA

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  3. Muito interessante! Sou aluna do segundo ano do ensino médio e estamos fazendo um trabalho de história sobre "a construção da memória do nazismo", sem dúvidas esta postagem ajudou muito e ainda abriu nossas mentes para uma reflexão muito maior. Obrigada por compartilhar esta emoção, tão forte, conosco. :)

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