Recentemente tive a oportunidade de visitar a Cracóvia, uma das cidades mais importantes da Polônia, reconhecida por sua riqueza cultural e protagonismo político. Cracóvia fica a 600 km de Berlim, localizada próximo ao vale da Silésia, na região sul do país. É possível chegar lá de carro, cruzando a fronteira entre a Alemanha e a Polônia, de avião ou de trem. Diariamente, hordas de turistas dirigem-se à Cracóvia atraídos pelas belezas da cidade. Além da rica arquitetura medieval, patrimônio mundial da Unesco desde 1978, Cracóvia é também a cidade do papa João Paulo II. Foi lá que Karol Wojtyla se destacou como liderança religiosa anticomunista quando era ainda o bispo local e lutou pela construção de uma polêmica igreja no bairro stalinista Nowa Huta. É também a terra onde estudou Copérnico.
Ao atravessar o parque
que cerca toda a área da Stare Miasto (Cidade Velha), logo nos deparamos com os
anúncios dos roteiros oferecidos pelas agências de turismo local. São dezenas
de atrativos: a fábrica de Oskar Schindler, as minas de sal de Wieliczka, passeios pelos vales
verdejantes de Ojcow, o ghetto e finalmente Auschwitz! Eis então que surge a primeira sensação de desconforto.
Um desconforto duplo para ser mais precisa. Estranhamento 1: “como podem fazer
propaganda turística de um campo de concentração?”. Estranhamento 2: “eu li ghetto?”, me pergunto se seria correto
utilizar o mesmo termo empregado pelos nazistas para delimitar o espaço onde aproximadamente
17 mil judeus foram enclausurados e depois enviados para os campos de
concentração. É verdade que algumas agências de turismo prefe
Pouco antes, no carro, a
caminho de Cracóvia, procurando mais informações sobre a cidade, leio no Wikipédia:
“Por estar perto de Auschwitz, é muito comum turistas, ao visitarem
a cidade, passarem o dia no mais famoso campo de concentração da Europa”.
Foi então que surgiu a dúvida: deveríamos
ceder aos apelos das agências de turismo e visitar ‘o mais famoso campo de
concentração’? No entanto, recompondo os fatos após essa experiência, nos demos
conta de que este desconforto já havia surgido antes mesmo da viagem ter
iniciado. Foi ainda no Brasil que eu e meu companheiro compartilhamos de forma
entusiasmada com uma colega judia o nosso roteiro de viagem, que incluía a
passagem por Auschwitz. Ao que ela respondeu: “ah, sim, você vai ver onde os
meus parentes foram assassinados”. Silêncio. Devo ainda acrescentar que já
estando em Berlim, quando participávamos de um evento acadêmico, o desconforto
reapareceu. Conversando com uma professora judia norte-americana, ela comentou
não ver sentido em visitar um campo de concentração. Pouco a pouco então fomos
nos dando conta do que significava visitar Auschwitz. Era apenas o início de uma
reflexão que se apresenta para nós de forma ainda bastante incipiente sobre as experiências
nos campos de concentração como lugares da memória. Daí a pergunta: um campo de
concentração é visitável? E, em caso positivo, para que serve a visita? A mesma
questão tem sido feita quando refletimos sobre as visitas turísticas nas
favelas do Rio de Janeiro.[1]
Sem dúvida, a comparação contribui para pensar nos diversos significados e
propósitos dessas experiências.[2]
Não era a primeira vez
que eu visitava um campo de concentração. Eu já havia conhecido o de Sachsenhausen, localizado nas proximidades de
Berlim. Acho que exatamente por isso o meu estranhamento ao chegar em Auschwitz
foi ainda maior. Em Berlim não há nenhum tipo de anúncio ou referência do campo
de concentração nos pontos turísticos da cidade. Penso que por motivos óbvios
os alemães não fariam disso um atrativo turístico.
Em Auschwitz, ao chegar
nas proximidades do portão do campo de concentração, nos deparamos com uma
infraestrutura bem montada para acomodar os visitantes. Ao lado, vários ônibus
desembarcavam dezenas de turistas. Homens, mulheres, crianças, idosos e adultos,
conversavam descontraidamente, falavam alto, riam, enquanto aguardavam o chamado
do guia local. Confesso que já dominada por um terrível mal-estar, combinado
com mau-humor por não poder optar pela visita individual e ter que me integrar
ao grupo, cheguei a pensar: onde pensam que estão? Na fila da Disneylandia? Não
é possível adentrar o local sozinho, a visita guiada é mandatória (há apenas um
horário no dia em que é possível fazer o percurso de forma independente).
Quando finalmente o guia
do nosso grupo fez o chamado para nos reunirmos, o forte incomodo que havia se
instalado em mim se agravou. O guia falava baixo e parecia se expressar de forma
mecânica. Adentramos no campo. Passamos pelo portão da entrada, o guia logo nos
chama a atenção para a tétrica frase escrita no portão “Arbeit macht frei”, em português “O trabalho liberta”. Passamos pela
cozinha onde os nazistas costumavam comer ao som da música clássica tocada
pelos prisioneiros e seguimos para os prédios onde abrigava o “consultório
médico” utilizado para realização de “experimentos” científicos com mulheres
judias e ciganas. Passamos por diversos prédios por onde sofreram milhares de
vítimas da barbárie nazista. Montanhas de cabelos, sapatos, malas
identificadas, panelas empilhadas e alguns pertences básicos expostos, objetos
da dignidade e das vidas roubadas pelos nazistas. A seguir, longos corredores
com fotos enquadradas dos presos e presas. Em cada retrato podíamos ler os
nomes, a idade e a origem dessas pessoas. Perdida e atormentada em meio a tantas
imagens, meu olhar fixou-se nas diversas expressões das mulheres retratadas.
Como um olhar pode dizer tanta coisa? Lá pelas tantas, observei que o moral do
grupo estava abalado, uns cansados, outros calados e resignados. Tinha ainda os
atentos que miravam cada detalhe, havia também aqueles que queria tirar foto de
tudo. Da montanha de cabelos ninguém ousou. O meu mau humor não cabia mais
naquele lugar, só havia tristeza e silêncio. O meu olhar então voltou-se para o
guia. Fiquei me perguntando como ele conseguia fazer esse trabalho. O que
significava ter como local de trabalho um campo de concentração? Como ele
conseguia percorrer diariamente e várias vezes ao dia o mesmo caminho repetindo
relatos detalhados das atrocidades cometidas pelos nazistas? No final do
percurso percebi que eu não era a única a pensar nos sentimentos do nosso guia.
Uma indiana perguntou a ele quantas vezes fazia o percurso guiado e como se
sentia. “Alguém tem que fazer”, respondeu o guia. Ao deixar o espaço e retomar
a estrada que nos levaria para bem longe daquele lugar, tive a certeza de que
ninguém retorna do portão “Arbeit macht
frei” do
mesmo jeito que entrou. E sim, ainda que o holocausto, assim como a miséria, tenha
se tornado objeto de fetiche de um turismo que se dá de forma muitas vezes
predatória, todos deveriam ver com os seus próprios olhos o que os seres
humanos são capazes de fazer contra a própria humanidade. Afinal, há reflexões
que apenas são formuladas por meio dos sentidos: o olhar, o cheiro e o toque. A
emoção.
Larissa R. Corrêa,
professora de História da PUC-Rio
[1] FREIRE-MEDEIROS, Bianca. Gringo na Laje: produção, circulação e consumo da favela turística.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.
[2] Ver exemplo na matéria intitulada: “Hotel de luxo simula favela para turistas
experimentarem a pobreza”, disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/11/hotel-de-luxo-simula-favela-para-turistas-experimentarem-pobreza.html,
acessado em 27 de julho de 2015.
Muita vontade de conversar... Vou escrever e depois postar.
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Muito interessante. Veja também o documentário da TV britânica: https://www.youtube.com/watch?v=rXJfRc_1TAA
ResponderExcluirMuito interessante! Sou aluna do segundo ano do ensino médio e estamos fazendo um trabalho de história sobre "a construção da memória do nazismo", sem dúvidas esta postagem ajudou muito e ainda abriu nossas mentes para uma reflexão muito maior. Obrigada por compartilhar esta emoção, tão forte, conosco. :)
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