Num país com relações raciais tão complexas como o
Brasil, não era de se esperar que na sua maior festa fosse diferente. Nada mais
indicativo do caráter estruturante do racismo brasileiro do que o Carnaval. E
na festa momesca deste ano, tivemos uma série de episódios que demonstram como
nosso racismo se fantasia...
Poderia falar da mulata
globeleza e da perversa objetificação e sexualização da mulher negra num
dos únicos momentos em que essa mesma mulher exerce algum tipo de protagonismo
no cenário midiático brasileiro[1]. Também seria interessante
analisar a insistência na defesa da fantasia de “nega maluca”, mas espero que a
forte campanha liderada por mulheres negras tenha dado o recado - e pra aqueles
que não entenderam muito bem, sugiro que assistam a apresentação da Beyoncé no
Super Bowl, desta semana[2]. Falar da escolha da Grazi
Massafera como mulata do Gois também
daria pano pra manga, mesmo porque o comentário da atriz foi tão ruim quanto a
escolha do jornalista. Ou então poderia examinar a “curiosa” composição étnica
dos blocos de rua do Rio de Janeiro e a ideia – errônea ao meu ver -, de que
neste momento do ano se vive a plena democracia no Brasil.
No entanto, a foto “carnavalesca” do menino negro adotado
por um casal de brancos chamou ainda mais minha atenção e, num primeiro
momento, despertou certa revolta (principalmente por envolver uma criança, que
só mais tarde fui saber que era filho do “Aladim” e da “Jasmine”). Como pessoas
minimamente antenadas, dispostas a adotar e amar um menino negro não conseguem
enxergar que fantasiá-lo de macaco é uma atitude racista? Como alguém que se
propõe a viver a paternidade/maternidade tendo passado pelo burocrático (e
necessário) processo de adoção brasileiro pode pensar num mundo ideal segundo os padrões da Disney?!!
A enxurrada de comentários nas redes sociais demonstrou
que, embora muitas pessoas tenham concordado comigo, outras tantas acharam que
as críticas a esses pais foram exageradas ou despropositadas, pois “racismo não
é fantasiar o filho negro de macaco, racismo é associar negro a macaco”. E
também porque “esse pessoal politicamente correto tá ficando um saco, é
Carnaval, qual o problema?!!”.
O problema aqui é que (pasmem!!), mas infelizmente, nosso
racismo é tão sofisticado que ter amigo(a)s negro(a)s, namorado(a)s negro(a)s,
filho(a)s negro(a)s não é, nem nunca foi, um “atestado antirracismo”. É preciso
mais, muito mais.
Em primeiro lugar, é necessário reconhecer que o racismo
existe, e que ele está por toda parte. Justamente por estar em todos os
lugares, o racismo cria uma espécie de névoa entorpecente que faz com que as
pessoas acreditem que as coisas “tenham lugares determinados”, criando uma
falsa ideia de normalidade. Toda vez que essa normalidade é questionada, uma
onda conservadora parece invadir as pessoas (principalmente as privilegiadas
por esse jogo), querendo que a “ordem” volte a reinar. Um exemplo cabal disso é
como muitas pessoas brancas ficam atordoadas (e muitas vezes ofendidas) quando
são chamadas de pessoas brancas por pessoas negras. Por quê? Porque ser branco
é estar dentro da normalidade; você não precisa dizer que alguém branco é
branco. Mas, por outro lado, “- olha como aquela menina negra é linda!”; “ - nossa,
esse negão é ponta firme!” Nosso racismo cotidiano fez com que o(a)s negro(a)s
fossem transformados em adjetivos, porque, em tese, não lhes cabia o papel de
sujeitos.
Contudo, por mais que a estrutura racista tentasse
abafar, a luta dos negros e negras brasileiros é tão antiga quanto o próprio
Brasil. As facilidades da internet fizeram com que parte da nossa luta ganhasse
um fôlego novo, pois trajetórias que pareciam solitárias se cruzaram criando
novas vozes, cada vez mais fortes e empoderadas. Então, ainda na onda
antirracista, o segundo passo seria reconhecer que essa é uma luta em que nós
negro(a)s somos protagonistas.
Por isso, para aqueles que entenderam e se reconheceram
na cadeia de privilégios criada pelo racismo é preciso calar e escutar. Quando uma atitude é entendida como racista por
pessoas negras, ela nada mais é... do que uma atitude racista. No caso da
"família do Aladim", muitos descreditaram o racismo da foto,
argumentando que “- o racismo está nos olhos de quem vê”. Está aí o único ponto
em que concordo com essas pessoas. Por criar lugares de privilégio, o racismo
também fez com que suas múltiplas manifestações possam ser tomadas como exagero
ou os atuais mimimis que pululam nas
redes sociais. Ora, nada mais natural e legítimo do que ele (o racismo) ser
melhor enxergado pelo(a)s negro(a)s!
Uma vez mais, acredito que calar e escutar se faz fundamental... Por que será que determinadas
lutas contra o racismo parecem ofender determinadas pessoas? Por que algumas
atitudes que escancaram o racismo incomodam tanto? Eu defendo que esse incômodo
é fruto do caráter estruturante do racismo. Quando ele é revelado, assim, na
cara, aquela normalidade toda com qual “estamos acostumados” é colocada em
cheque... Os papéis se invertem e quem está acostumado a falar, tem que ouvir.
Como já disse, eu considero essa uma etapa muito
importante, porque ela mexe na zona de conforto criada pela falsa normalidade
citada há pouco. E, sobretudo, porque acredito que ouvir é uma forma de aprender. O racismo se alimenta de
preconceitos e de ignorância com uma voracidade sem tamanho... Quebrar essa
lógica exige trabalho, muito trabalho. Mudar de lugar, lidar com seus incômodos
e entender que nossas referências são historicamente construídas são passos
cruciais para compreender que, como Chimamanda Adichie apontou brilhantemente,
a história não é única[3].
Para os pais do menino – que parecem ter descoberto a duras penas a dimensão do
racismo brasileiro – espero que não restem dúvidas que criar um filho negro
significa ampliar seus horizontes, ir atrás de novos referenciais e,
provavelmente, dialogar muito pouco com o “mundo mágico da Disney” – que,
diga-se de passagem, até hoje não apresentou nenhum protagonista negro(a) em
seus desenhos com a exceção da “Princesa e o Sapo”, animação em que estereótipos
racistas são apresentados sem nenhum cuidado e que os personagens principais
passam mais tempo da forma de animais do que na de gente.
E já que estou falando em calar e escutar sugiro a eles, e aos demais interessados, que
mergulhem no universo africano e aprendam com as histórias contadas há séculos
pelos griots, como o mundo pode ser
maior (e melhor) quando estamos dispostos a ouvir.
[1]
Ver a análise de Giovana Xavier em seu
blog: http://pretadotora.blogspot.com.br/2016/01/no-fio-de-maria-navalha-mulheres-negras.html
[2] Sobre a
apresentação da cantora estadunidense Beyoncé ver: https://www.youtube.com/watch?v=-5BPfRHX1SE
[3] Ver a conferência “O perigo da história única” de Chimamanda Adichie em:
https://www.youtube.com/watch?v=EC-bh1YARsc
PARABÉNS pela análise objetiva e profunda!
ResponderExcluirÓtimo Ynaê! Simples, justo e bem explicado.
ResponderExcluir