sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Sobre calar e escutar frente ao racismo (Ynaê Lopes dos Santos)

Ynaê Lopes dos Santos (CPDOC-FGV)
Num país com relações raciais tão complexas como o Brasil, não era de se esperar que na sua maior festa fosse diferente. Nada mais indicativo do caráter estruturante do racismo brasileiro do que o Carnaval. E na festa momesca deste ano, tivemos uma série de episódios que demonstram como nosso racismo se fantasia...
Poderia falar da mulata globeleza e da perversa objetificação e sexualização da mulher negra num dos únicos momentos em que essa mesma mulher exerce algum tipo de protagonismo no cenário midiático brasileiro[1]. Também seria interessante analisar a insistência na defesa da fantasia de “nega maluca”, mas espero que a forte campanha liderada por mulheres negras tenha dado o recado - e pra aqueles que não entenderam muito bem, sugiro que assistam a apresentação da Beyoncé no Super Bowl, desta semana[2]. Falar da escolha da Grazi Massafera como mulata do Gois também daria pano pra manga, mesmo porque o comentário da atriz foi tão ruim quanto a escolha do jornalista. Ou então poderia examinar a “curiosa” composição étnica dos blocos de rua do Rio de Janeiro e a ideia – errônea ao meu ver -, de que neste momento do ano se vive a plena democracia no Brasil.
No entanto, a foto “carnavalesca” do menino negro adotado por um casal de brancos chamou ainda mais minha atenção e, num primeiro momento, despertou certa revolta (principalmente por envolver uma criança, que só mais tarde fui saber que era filho do “Aladim” e da “Jasmine”). Como pessoas minimamente antenadas, dispostas a adotar e amar um menino negro não conseguem enxergar que fantasiá-lo de macaco é uma atitude racista? Como alguém que se propõe a viver a paternidade/maternidade tendo passado pelo burocrático (e necessário) processo de adoção brasileiro pode pensar num mundo ideal segundo os padrões da Disney?!!
A enxurrada de comentários nas redes sociais demonstrou que, embora muitas pessoas tenham concordado comigo, outras tantas acharam que as críticas a esses pais foram exageradas ou despropositadas, pois “racismo não é fantasiar o filho negro de macaco, racismo é associar negro a macaco”. E também porque “esse pessoal politicamente correto tá ficando um saco, é Carnaval, qual o problema?!!”.
O problema aqui é que (pasmem!!), mas infelizmente, nosso racismo é tão sofisticado que ter amigo(a)s negro(a)s, namorado(a)s negro(a)s, filho(a)s negro(a)s não é, nem nunca foi, um “atestado antirracismo”. É preciso mais, muito mais.
Em primeiro lugar, é necessário reconhecer que o racismo existe, e que ele está por toda parte. Justamente por estar em todos os lugares, o racismo cria uma espécie de névoa entorpecente que faz com que as pessoas acreditem que as coisas “tenham lugares determinados”, criando uma falsa ideia de normalidade. Toda vez que essa normalidade é questionada, uma onda conservadora parece invadir as pessoas (principalmente as privilegiadas por esse jogo), querendo que a “ordem” volte a reinar. Um exemplo cabal disso é como muitas pessoas brancas ficam atordoadas (e muitas vezes ofendidas) quando são chamadas de pessoas brancas por pessoas negras. Por quê? Porque ser branco é estar dentro da normalidade; você não precisa dizer que alguém branco é branco. Mas, por outro lado, “- olha como aquela menina negra é linda!”; “ - nossa, esse negão é ponta firme!” Nosso racismo cotidiano fez com que o(a)s negro(a)s fossem transformados em adjetivos, porque, em tese, não lhes cabia o papel de sujeitos.
Contudo, por mais que a estrutura racista tentasse abafar, a luta dos negros e negras brasileiros é tão antiga quanto o próprio Brasil. As facilidades da internet fizeram com que parte da nossa luta ganhasse um fôlego novo, pois trajetórias que pareciam solitárias se cruzaram criando novas vozes, cada vez mais fortes e empoderadas. Então, ainda na onda antirracista, o segundo passo seria reconhecer que essa é uma luta em que nós negro(a)s somos protagonistas.
Por isso, para aqueles que entenderam e se reconheceram na cadeia de privilégios criada pelo racismo é preciso calar e escutar. Quando uma atitude é entendida como racista por pessoas negras, ela nada mais é... do que uma atitude racista. No caso da "família do Aladim", muitos descreditaram o racismo da foto, argumentando que “- o racismo está nos olhos de quem vê”. Está aí o único ponto em que concordo com essas pessoas. Por criar lugares de privilégio, o racismo também fez com que suas múltiplas manifestações possam ser tomadas como exagero ou os atuais mimimis que pululam nas redes sociais. Ora, nada mais natural e legítimo do que ele (o racismo) ser melhor enxergado pelo(a)s negro(a)s!
Uma vez mais, acredito que calar e escutar se faz fundamental... Por que será que determinadas lutas contra o racismo parecem ofender determinadas pessoas? Por que algumas atitudes que escancaram o racismo incomodam tanto? Eu defendo que esse incômodo é fruto do caráter estruturante do racismo. Quando ele é revelado, assim, na cara, aquela normalidade toda com qual “estamos acostumados” é colocada em cheque... Os papéis se invertem e quem está acostumado a falar, tem que ouvir.
Como já disse, eu considero essa uma etapa muito importante, porque ela mexe na zona de conforto criada pela falsa normalidade citada há pouco. E, sobretudo, porque acredito que ouvir é uma forma de aprender. O racismo se alimenta de preconceitos e de ignorância com uma voracidade sem tamanho... Quebrar essa lógica exige trabalho, muito trabalho. Mudar de lugar, lidar com seus incômodos e entender que nossas referências são historicamente construídas são passos cruciais para compreender que, como Chimamanda Adichie apontou brilhantemente, a história não é única[3]. Para os pais do menino – que parecem ter descoberto a duras penas a dimensão do racismo brasileiro – espero que não restem dúvidas que criar um filho negro significa ampliar seus horizontes, ir atrás de novos referenciais e, provavelmente, dialogar muito pouco com o “mundo mágico da Disney” – que, diga-se de passagem, até hoje não apresentou nenhum protagonista negro(a) em seus desenhos com a exceção da “Princesa e o Sapo”, animação em que estereótipos racistas são apresentados sem nenhum cuidado e que os personagens principais passam mais tempo da forma de animais do que na de gente.
E já que estou falando em calar e escutar sugiro a eles, e aos demais interessados, que mergulhem no universo africano e aprendam com as histórias contadas há séculos pelos griots, como o mundo pode ser maior (e melhor) quando estamos dispostos a ouvir.








[2] Sobre a apresentação da cantora estadunidense Beyoncé ver: https://www.youtube.com/watch?v=-5BPfRHX1SE
[3] Ver a conferência “O perigo da história única” de Chimamanda Adichie em: https://www.youtube.com/watch?v=EC-bh1YARsc

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