Sidney
Chalhoub (UNICAMP/Universidade de Harvard)
Os
futuros anais históricos da Bruzundanga contarão admirados as efemérides
daqueles remotíssimos dias de março de 2016. No quarto dia daquele mês, sexta-feira
aziaga, certo juiz da roça, um tanto guapo, outro tanto aloprado, prendeu por
um dia um ex-presidente da república que era também um ex-operário. O
acontecimento espetacular acelerou a história.
As
duas semanas seguintes foram um deus nos acuda. O juiz da roça, ao que se dizia
um simpatizante do partido da ave de bico comprido, bisbilhotou e divulgou
ilegalmente conversas de autoridades diversas, até mesmo da presidenta da
Bruzundanga. O magistrado de província justificou os atos que praticara à
revelia da lei como decorrentes da elevadíssima estatura moral de sua pessoa e
de seus propósitos. Tais escutas telefônicas, consideradas de gravidade ímpar
por parte da imprensa que as considerou de gravidade ímpar (sic), tinha como
objetivo conclamar a massa dos cidadãos parrudos da república a ir para a rua e
mostrar a sua cara.
Eles
foram. Carregaram cartazes com a cara do juiz da roça, que não coube em si de
contente e filosofou, mui profundamente, sobre a sabedoria das ruas e a
necessidade de ouvi-las. Era preciso derrubar o governo da Bruzundanga. Dirigentes
do partido da ave de bico comprido e do partido que nunca está fora do poder
reuniram-se para planejar o novo governo, nomear ministros, pactuar o
aprofundamento da política econômica em curso, que não vinha dando resultado, o
que comprovava a excelência de sua concepção.
Uma
sumidade do partido da ave de bico comprido acalmou os políticos que seriam
depostos, perseguidos pelo juiz da roça e enviados para o calabouço. Explicou
mui serenamente que o novo governo não seria vingativo. Um magistrado da
Altíssima Corte do país tagarelava todos os dias, em entrevistas à mídia, a
respeito de como julgaria os processos que ainda lhe chegariam à mesa para julgar
(sic). Num último lance genial, uma espécie de cereja do bolo, um ex-presidente
que era também um ex-intelectual, muito indignado com a possibilidade de o
ex-presidente que era também um ex-operário ocupar uma pasta ministerial,
sentenciou: "analfabeto não pode ser ministro".
Que
tempos memoráveis! Machado de Assis, intérprete-mor da Bruzundanga, escreveu um
livro, chamado Memórias póstumas de Brás
Cubas, que consistiu numa espécie de tratado de interpretação sociológica
das duas semanas da história da Bruzundanga, naquele ano de 2016, decorridas
entre o quarto e o décimo oitavo dias de março. Em tal compêndio de
sapientíssima hermenêutica do repertório simbólico da sociedade bruzundanguense,
o autor formulou o conceito de descaramento
ou desfaçatez de classe.
Autor
genial e complexo, Machado de Assis só teorizava por meio de alegorias, ou por
linhas tortas, que é um jeito mais simples de dizer a mesma cousa. Por isso
inventou Brás Cubas, outro guapo da história pátria, narrador e protagonista
das Memórias. Brás Cubas não era um
autor defunto, mas um defunto autor. Quer dizer, ele decidiu contar a própria
história depois de morto, enviando os capítulos, direto do além-mundo, por
correio sideral. A circunstância de morto dava ao autor daquelas páginas uma
desenvoltura primorosa: "Agora... que estou cá do outro lado da vida,
posso confessar tudo"; e se o livro, "fino leitor", "te não
agradar... pago-te com um piparote", que, ao que parece, era como se dizia
"peteleco" naquela época.
Por
conseguinte, o primeiro elemento constituinte do conceito de desfaçatez de classe é o transbordamento
de autoconfiança, ou o impudor radical, que passa a guiar as atitudes de Brás
Cubas e seus semelhantes. Podem "confessar tudo" o que pensam e fazem.
Brás Cubas foi sujeito rico, dono de propriedades no Rio de Janeiro imperial,
senhor de escravos, entre eles Prudêncio. Este era "um moleque de
casa", "o meu cavalo de todos os dias"; "punha as mãos no
chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso,
com uma varinha na mão, fustigava-o". Se Prudêncio reclamasse, Brás
retorquia: "Cala a boca, besta!".
Brás
Cubas sofria de monomania em relação às mulheres. Ele organizou a sua narrativa
em torno das personagens femininas de sua vida, desde Pandora ou a mãe
Natureza, que lhe aparecera no delírio derradeiro antes da morte (ou no momento
do nascimento do defunto autor), até Virgília, passando por Eugênia, Marcela,
dona Plácida etc. Dona Plácida foi uma criada da família de Virgília, que se
tornou depois alcoviteira dos amores clandestinos desta senhora com o memorialista.
Brás
se perguntou certa vez sobre a utilidade da vida de dona Plácida, queria
desvendar o porquê de sua vinda ao mundo. Chegou à seguinte conclusão:
"para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não
comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de
tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã
resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um
dia na lama ou no hospital".
As
historietas de Prudêncio e dona Plácida encapsulam o segundo elemento
constitutivo do conceito de descaramento
ou desfaçatez de classe. A desfaçatez
de classe acontece quando a classe brascúbica, uma vez achacada de crise de
despudor, como ocorreu na Bruzundanga naquelas memoráveis Jornadas de março de
2016, destampa ao mundo os mais recônditos segredos de sua maneira de ver as
cousas, segundo a qual negros, mulheres e pobres existem para ralar ou empurrar
traquitanas enquanto o patronato chiquérrimo vocifera, à beira-mar, contra a
presidenta eleita.
Brás
Cubas articulou teoricamente a ideia, central ao conceito sociológico de desfaçatez de classe, de que as
desigualdades ou injustiças sociais são parte necessária da paisagem, assim
como as montanhas, os rios e as praias: "Outrossim, afeiçoei-me à
contemplação da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a
classificá-la por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao
sabor das circunstâncias e lugares".
Quiçá
o momento analiticamente mais promissor das Jornadas de março de 2016 tenha
sido o comentário do ex-presidente que era também ex-intelectual, de que
"analfabeto não pode ser ministro". A concisão dialética da frase é
notável. Ao decifrá-la à luz do conceito de desfaçatez
de classe, temos uma visão de mundo construída por metáfora, ou pela
transposição do sentido próprio ao figurado. Assim, "analfabeto"
significa a maioria da população da Bruzundanga, cujo lugar social, em respeito
à tradição, deve permanecer o mesmo na longa duração histórica, com tendência
ao infinito. Já "ministro" é fórmula abreviada de dizer classe brascúbica,
conforme a definição de Machado de Assis (op.
cit., passim).
Um
participante das manifestações de 18 de março, contrárias ao impedimento da
presidenta, foi às ruas com um cartaz no qual criticava a tese de Machado de
Assis a respeito da desfaçatez de classe,
por considerá-la desnecessariamente hermética. Segundo o manifestante, a crise
política da Bruzundanga se resumia ao seguinte: "Quando a senzala aprende
a ler, a casa grande surta". Isso escrito em letras garrafais, o que é uma
maneira de vencer no grito, e Machado de Assis era gago, o que de antemão deu
ganho de causa ao crítico popular.
Os
anais históricos da Bruzundanga guardam um enigma. Os historiadores não
descobriram o que aconteceu depois das Jornadas de março. Uns dizem que as duas
semanas de desfaçatez de classe
demonstraram o poder invencível da classe brascúbica, logo o impedimento da
presidenta era fait accompli, favas
contadas. Outros, adeptos de ver as cousas por meio de velhos adágios
populares, sustentaram que "a cura veio pelo excesso do mal". O descaramento de classe suscitou o
demônio rubro da resistência, quer dizer, a virada satânica da história.
Outra
personagem popular, cheia de ouvir tanta teoria, recorreu ao tesouro de
sabedoria do esporte bretão e acabou com esta crônica: "o jogo é jogado, e
só acaba quando termina".
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