Seria melhor escrever crônica, mas hoje não é possível.
Faz dias que abro jornais e revistas e aparece uma saraivada de notícias e
artigos de opinião a respeito do que o governo eleito do país pretende fazer na
área de Educação. Tramita um projeto de lei no parlamento para instituir a
censura em sala de aula, fala-se em fundir o ministério da Educação com outro,
em cobrar mensalidades nas universidades públicas, em vouchers etc. Bastante cacofonia, mas não seria razoável descartar
de início todos os pontos que aparecem para discussão. Todavia, há alguns
esclarecimentos a fazer no que tange à produção do conhecimento histórico e a
difusão dele nas instituições de ensino, nos livros, em revistas
especializadas, em meios diversos de divulgação. Apesar das aparências (a
julgar pelo que se lê e escuta), a produção de conhecimento histórico e o
ensino dele não são a casa da mãe Joana. De modo que vou explicar duas ou três
cousas básicas, para colocar a conversa em lugar devido.
Ao
que parece, professores e professoras de história são alvos principais de
iniciativas para combater uma suposta doutrinação nas escolas. Todo dia há
alguma notícia sobre docente de história denunciado, perseguido, demitido,
ameaçado, agredido verbalmente, ou pior. É possível que tenha havido um excesso
ou outro, em especial devido à alta temperatura política dos últimos meses. Mas
a exceção não faz a regra, nem o ataque em curso contra docentes de história
precisa de episódios isolados para se justificar. Quais os motivos para tanto
foco nos historiadores? Por que eles passaram a incomodar tanto a certos
setores da sociedade brasileira e da classe política?
A
resposta é complexa. Seria necessário situá-la no quadro mais amplo de
explicações dos motivos pelos quais a extrema direita chegou ao poder no
Brasil, neste preciso momento. Conheço meus pares. Nós, historiadores, e
colegas cientistas sociais de diversas disciplinas, no Brasil e no mundo, nos
debruçaremos sobre o tema nas próximas décadas e vamos dissecar o assunto até
que a nuvem espessa da incompreensão se dissipe um pouco, ou bastante. O
processo é lento, já começou e não tem hora para acabar. O tempo nervoso da
política não tem nada a ver com a longa duração requerida na investigação, no
diálogo acadêmico e na sistematização de resultados de pesquisa.
Por
aí se chega a uma primeira resposta quanto aos ataques aos historiadores. Os
historiadores brasileiros estão na berlinda porque o conhecimento que produzem hoje
é autônomo, crítico, baseado em pesquisas empíricas lentas e sólidas, informado
por debates conceituais densos. Além disso, em várias áreas da pesquisa
histórica, têm o reconhecimento da comunidade acadêmica internacional. Desde o
início da década de 1980, a formação de historiadores se profissionalizou no
país de maneira admirável. Há hoje dezenas de cursos de mestrado e doutorado em
história espalhados por todas as regiões. São programas de pós-graduação
constantemente e rigorosamente avaliados pelos pares, em processos de
acompanhamento institucionalizados pelo governo federal que nada deixam a dever
(de fato, superam em muitos aspectos) a procedimentos similares existentes em
outros países. Vários desses programas são de excelência, muitos deles de ótima
qualidade. Via de regra, os professores e professoras de história das
universidades brasileiras passaram por um processo de formação exigente,
demorado, a demandar doses absurdas de vocação e determinação –quatro anos de
graduação, dois ou três anos de mestrado, quatro a seis anos de doutorado. Dez
a treze anos de formação, quando dá tudo certo, sem intempéries. Essa qualidade
concentrada nas universidades, nas públicas em especial, mas não só nelas, se
espraia pelo sistema inteiro, instaura a reflexão crítica sobre a história em
toda parte. Isso incomoda demais.
É
fácil entender o desconforto de tanta gente. As historiadoras e historiadores
brasileiros passaram as últimas décadas a escarafunchar arquivos e rever
inteiramente o que antes se sabia sobre a história da escravidão e do racismo
no país. A violência da escravidão, a expansão da cafeicultura baseada na
invasão de terras e no tráfico africano ilegal, o estudo das formas de resistência
e de enfrentamento cotidiano por mulheres e homens escravizados –tudo isso se
pesquisa e aprende, chega às salas de aula e até ajudou na justificativa para a
adoção de políticas públicas de ação afirmativa. A historiografia brasileira
participou intensamente de um movimento internacional de investigação das
relações de gênero e seu impacto na reprodução de desigualdades em sociedades
diversas, em qualquer tempo. Aprendemos a respeito dos modos de as mulheres
lidarem com as violências e as formas diversas de subordinação, sabemos melhor
aquilo que têm feito ao longo da história contra aqueles que pregam a violação
delas, a amputação de suas potencialidades, a interdição de seus sonhos. Houve
uma gama enorme de estudos sobre a ditadura brasileira de 1964-1985, baseados
em fontes primárias que se tornaram disponíveis, produzidos em diálogo com a
historiografia internacional a respeito das ditaduras latino-americanas no
período da guerra fria. Os historiadores brasileiros sequer inventaram de
chamar “ditadura” o que ocorreu no país naquele período, pois historiadores de
outras partes do mundo já haviam adotado a bossa de chamar a cousa pelo nome
que a cousa tem.
Nada
disso, e muito mais, agrada a quem tem agora as rédeas do poder. Paciência.
Outras eleições virão. Mas algo precisa ficar claro. Nenhum político, nenhum
general, nenhum juiz, irá determinar como historiadores de ofício chamarão isso
ou aquilo, ou como exercerão o seu ofício. Podemos ser calados, mas não
vencidos. E estamos à disposição para ensinar, como sempre estivemos, a quem
quiser aprender. As portas das universidades brasileiras estão abertas a quem
se qualificar para ingressar nelas –há enem, vestibulares, concursos de
ingresso para programas de pós-graduação. Depois muitos anos de formação,
exames diante de bancas de mestrado, doutorado, tudo com os salamaleques da
tradição acadêmica. Há centenas e centenas de livros e artigos científicos
sobre os temas citados no parágrafo anterior, e sobre muitos mais. É longo,
duro, mas fascinante. Podem crer.
Sidney
Chalhoub
Professor
of History, Harvard University
Professor Titular Colaborador, Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP)
Obrigado! Texto didático, de longo alcance e elucidated.
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