Sidney Chalhoub (UNICAMP/ Harvard University)
Ó vida, ó céus, ó azar... A Bruzundanga não dá sossego às historiadoras do futuro. Passaram a semana perplexas com um artigo assinado por dois procuradores da Lava-Jato, um deles ás no powerpoint, no qual se diz que "o debate" sobre as investigações de corrupção "transcendeu o meio jurídico e, para nossa sorte [deles, procuradores], ganhou o gosto popular" (grifo meu). Cáspite, como assim? O que tem a ver investigação judicial com "gosto popular"?
Confusas,
mas sempre intrigadas com aquela sociedade desaparecida havia milênios, as
historiadoras foram aos alfarrábios de praxe, quer dizer, às obras completas de
Machado de Assis, o grande clássico de sociologia bruzundanguense. Quincas Borba, capítulo XLVII. Rubião
vinha ladeira abaixo, a pensar na bela Sofia, quiçá a vislumbrar em si mesmo os
primeiros sinais de insanidade. Ao se acomodar no tílburi, lembrou de um
episódio que presenciara na juventude, que decerto lhe marcara fundo o espírito.
Agora, num momento de transe mental, caído por Sofia, preocupado com a reação
dela aos seus avanços, a cena de outrora reapareceu inteira à sua frente. Uma
das historiadoras exclamou de repente: "A cena do enforcamento! É isso!
Toni Morrisson, Playing in the Dark.
Lembram?" Ninguém entendeu nada.
As
historiadoras leram juntas e meditaram sobre a passagem seguinte, de Quincas Borba. Rubião vinha andando
sempre, até que "Na esquina da rua dos Ourives deteve-o um ajuntamento de
pessoas, e um préstito singular. Um homem, judicialmente trajado, lia em voz
alta um papel, a sentença. Havia mais o juiz, um padre, soldados, curiosos.
Mas, as principais figuras eram dous pretos. Um deles, mediano, magro, tinha as
mãos atadas, os olhos baixos, a cor fula, e levava uma corda enlaçada no
pescoço; as pontas do baraço iam nas mãos de outro preto. Este outro olhava
para a frente e tinha a cor fixa e retinta. Sustentava com galhardia a
curiosidade pública. Lido o papel, o préstito seguiu...". Rubião ficou
"impressionado", dividido entre duas "forças íntimas" --uma
que lhe mandava seguir caminho, outra "que fosse ver enforcar o
preto". Rubião "fechou os olhos, e deixou-se ir ao acaso". O tal
acaso fez com que seguisse o préstito, pensando todavia que não queria ver a
execução. Queria ver só "a marcha do réu, a cara do carrasco, as
cerimônias...". De vez em quando o préstito parava, gente se apinhava às
portas e janelas, o oficial de justiça relia a sentença. Os muitos curiosos
conversavam sobre o crime, diziam que o assassino era "homem frio e
feroz". Sem dar por si, Rubião se encontrava em meio à "multidão
compacta", no largo do Moura, o local da execução. Tentou voltar, mas cada
um de seus pés foi para um lado. O réu subiu à forca, uma onda de tremor pegou
a turba toda, Rubião sem entender "que mãos de ferro lhe pegavam da alma e
a retinham ali". Seguiu-se o instante fatal: "o réu esperneou,
contraiu-se, o algoz cavalgou-o de um modo airoso e destro; passou pela
multidão um rumor grande, Rubião deu um grito, e não viu mais nada".
O
que, de fato, vira Rubião? Por que, num momento de transe, sua mente o levara
de volta a esse episódio da juventude? Rubião descia da casa de Palha e Sofia
no início da década de 1870. O narrador informa que ele presenciara o episódio
do enforcamento quando ainda era muito jovem. É razoável supor que o
acontecimento lembrado ocorrera nalgum momento da década de 1840. Leitores e
leitoras do século XIX apreciariam a passagem suprindo algumas informações que
as historiadoras futuras da Bruzundanga aprenderam com muita pesquisa e alguma
imaginação. Assim, tanto o condenado quanto o carrasco eram escravos, forçados
ambos a participar da "cerimônia". Além disso, o réu fora condenado
no âmbito da lei de exceção de junho de 1835, aprovada após insurreições
escravas em Minas Gerais e na Bahia, que abreviara os trâmites legais para o
julgamento pelo júri e a execução, sem direito a recurso, dos escravos acusados
de atentar contra a vida de seus senhores, familiares e feitores.
Rubião
vira um enforcamento que se fizera cicatriz na alma, algo que nunca
compreenderia, mas que se tornaria ferida de novo, conforme ele próprio passara
a circular nas altas rodas senhoriais da Corte. Ele vira a encenação da justiça
como afirmação do poder e da violência do domínio escravocrata, em espetáculo
público, na economia regrada da punição exemplar, destinada a inspirar terror
por meio do jeito solene em que a violência máxima --o assassinato por parte do
Estado- se oferecia à curiosidade popular. Era a execução da lei. Outras cousas
ficavam submersas. Réu e carrasco, mui provavelmente cativos, o eram numa época
em que centenas de milhares de africanos chegavam ao país por contrabando, para
serem reduzidos à escravidão ilegalmente nas fazendas de café das províncias do
Rio de Janeiro e, em seguida, de São Paulo. Exemplo de corrupção sistêmica no
bojo mesmo da formação do Estado nacional. A cafeicultura, ou o centro-sul do
país, reforçava a sua vocação de metrópole, de poder colonial interiorizado a
sugar e exaurir a força de trabalho de africanos contrabandeados e demais
escravizados comprados às províncias do norte e nordeste do país. Rubião viu um
enforcamento e intuiu um dos sentidos mais profundos da história
bruzundanguense.
Corta,
disse uma das historiadoras, como se percebesse que precisava despertar as
companheiras da introspecção provocada pela leitura da passagem de Machado de
Assis. "2016, ano do impichamento", disse ela, segurando entre os
dedos um papel amarelecido e craquelê que encontrara no restolho do acervo de
um obscuro historiador da Bruzundanga, cujo nome se perdera na noite dos tempos.
Era a transcrição de trecho duma entrevista de Jurema Werneck, médica, ativista
do movimento negro, feminista. As palavras eram de uma lucidez cortante; a
ledora as pronunciava de um jeito calmo, pausado, como se não fosse possível
lê-las doutro modo.
Jurema
dizia "que a Lava Jato é complexa porque está, acredito que está,
pegando criminoso. Acredito também que está usando meios ilegais". Referia-se
em seguida às "pessoas que tem que ficar na cadeia (...) até confessar,
até fazer uma delação premiada. Isso é um absurdo". Prosseguiu assim:
"eu queria dizer que essa experiência (...) não é inovação. (...)De onde
eu vim isso é todo dia, não é? Todo mundo está dizendo que não tem democracia
no Brasil, que isso é uma ditadura. Isso era o que a gente dizia. (...) O nosso
discurso [agora] está na rua, na boca dos outros [risos]. A gente disse que era
assim mesmo, a polícia é assim, o juiz é assim, não é? Os partidos são assim,
os brancos são assim. Porque são assim. Só que agora estão estendendo [esses
procedimentos] aos brancos do PT, que é menos branco (...) porque é PT. Eles
são menos brancos que os outros brancos. (...) Eles são menos brancos que os
outros porque são do PT. (...) Deve ser tudo nordestino, na cabeça do
reacionário, é tudo nordestino, então é menos branco. Então estão tratando
esses brancos como nos tratam", mas a nossa "democracia" sempre
foi essa.
Silêncio profundo no recinto da
entrevista, anotou o historiador. À margem, talvez porque fosse chegado a uma
tirada retórica, rabiscou que Jurema "deixara exposto o ventre da história
bruzundanguense". Nesse ponto, as historiadoras reviraram os olhos, entre
condescendentes e compreensivas. De qualquer modo, acharam que havia ali uma
hipótese sugestiva a respeito daquilo que unia Rubião e os procuradores, algo
que os fazia andar às escuras (playing in
the dark...).
As
historiadoras ainda não descobriram até quando continuou o tribunal de exceção high tech chamado Lava-Jato. Querem
acreditar que prosseguiu até que todos os corruptos fossem punidos. Porém a
investigação deixou de cativar o "gosto popular" depois que juízes e
procuradores foram obrigados a se comportar segundo as responsabilidades de
suas funções, tornando-se sérios ao ponto de a mídia corporativa não lhes dar
mais a mínima bola. A partir daí a Bruzundanga foi feliz para sempre enquanto
durou.
Sidney Chalhoub
Nenhum comentário:
Postar um comentário