Ivana Stolze Lima (Fundação Casa de Rui Barbosa/ PUC-Rio)
Nos
últimos dias me envolvi com a preparação para participar da mesa Religiosidade
Afro-Brasileira e o Ensino de História, no Seminário ProfHistória Ensino de
História da África, da cultura afro-brasileira e indígena na Unirio. É um
mestrado profissional que funciona em rede nacional, que vem movimentando a pós-graduação
dita acadêmica e, mais amplamente, vem movimentando a própria área de História.
Passei várias horas lendo ansiosamente o máximo que podia de 3 dissertações
fascinantes.
O trabalho de Isabelle de Lacerda
Nascentes Coelho, intitulado O Axé na Sala de Aula: abordando as religiões
afro-brasileiras no Ensino de História
(UFRRJ, 2016) (como percebem, subverti o seu título para esse relato), propõe uma
preciosa "ferramenta" (ajô!) de papel e ideias, materializada em
pranchas ilustradas para ensinar a filosofia, mitologia e epistemologia das
religiões afro através da apresentação dos orixás, seus atributos, histórias e
façanhas.
O primeiro a abrir a roda, como não poderia deixar de
ser, é Exu/Eleguá/Bará e sua bela jogada
de mestre pregando uma peça a pretensos donos da verdade. Disfarçado em um
homem desconhecido, portando um barrete de duas cores, Exu passa por dois
lavradores que desprezaram oferendas que lhe deviam ter feito. Até então
amigos, passam a discutir sobre a cor do barrete do desconhecido. "É branco,
com certeza", diz um deles, convencido que sua parcialidade é a única. "Vermelho,
o mais vermelho possível", diz o outro. Acusações mútuas de cegos e
mentirosos se sucedem, levando à briga e morte dos teimosos, incapazes de ouvir
o outro e de pôr suas próprias visões de mundo em perspectiva.
Quem conhece a história da escravidão e em especial as
políticas senhoriais em relação às culturas africanas no Brasil, sabe que a
tolerância nada mais foi que um estratégia de controle. O binômio
repressão/tolerância foi usado em diferentes gradientes por delegados, juizes,
senhores, feitores. O axé "deu uma volta" nessa lógica. O trabalho de
Isabelle propõe ir além da chave da tolerância para propor uma ética da alteridade na sua sala de aula em Itaguaí. Esse trecho dá
bem uma ideia da importância de seu trabalho para o desenvolvimento de
subjetividades das crianças e jovens com que lida: "As atividades envolvendo narrativa mítica e recriação
artística dos deuses do panteão afro-brasileiro através de desenho, foram de
longe, as mais populares com a turma. Os momentos de debate, compartilhamento
de ideias também foi bastante produtivo. No decorrer das discussões começaram a
emergir desabafos, confidências, compartilhamento de memórias e experiências
vividas com relação a diversas formas de preconceito e intolerância, não apenas
ligadas ao tema afro-religioso. Este foi um momento importante de catarse
coletiva e de fortalecimento dos vínculos de solidariedade, afetividade e
empatia. Mesmo sendo bastante jovens, os estudantes se mostraram capazes de
exercitar a autorreflexão e enfrentar seus próprios preconceitos." (p. 64)
Os
trabalhos dessas professoras/historiadoras tornam-se ainda mais relevantes e
urgentes quando se considera as condições em que são gestados. Jessika Rezende
Souza, autora de Entre a cruz e o
terreiro: uma análise em torno da integração entre a religiosidade
afro-brasileira e o ensino de história no Museu do Negro (UFRJ, 2016) diz
que na escola onde trabalha teria sido questionada e desqualificada a abordagem
do candomblé como não sendo tema de uma aula de história. Ooi??? Como assim não
é tema da história? Em quase todas as disciplinas na minha atuação como professora
de história do Brasil na graduação (e agora também na pós) esse tema se impõe,
e olha que não deve ser só por eu ser filha de Ogun, mas por ser historiadora
que preza um entendimento complexo dos
processos históricos. O trabalho de Jessika propõe uma visita cuidadosa e
sensível ao Museu do Negro, sediado na Igreja do Rosário, abrindo assim a
integração desse lugar de memória como uma forma de semear o conhecimento
histórico em seus alunos. Jessika cutuca o currículo engessado e folclorizante,
buscando as organizações negras, questionando a velha imagem da democracia
racial e reclamando mais do que o "dever de memória", o "direito
à história".
Carolina
Barcellos Ferreira traz um relato muito detalhado do que pode significar
trabalhar com as "coisas de macumba" na sua prática de ensino em São
Gonçalo. Ela e alguns colegas professores, cansados da eterna e inquestionada
comemoração da Páscoa, promovem regularmente atividades para que os alunos sob
sua responsabilidade saibam que o mundo é maior do que parece, com práticas que
assegurem a expressão da diversidade religiosa. Em seu "Isso é coisa de macumba?" Elaboração de um material
pedagógico de História sobre as religiosidades afro-brasileiras em museus do
Rio de Janeiro (UERJ, 2016) , ela conta uma história muito tocante. Em
visita ao Museu Histórico Nacional, diante do Templo de Oxalá, uma aluna não se
conteve de medo e saiu correndo, conjurando o ato com um "cruz
credo". Essa dura experiência poderia ter paralizado Carolina. Mas ela fez
disso um tema de dissertação, construindo um projeto de observação de objetos
religiosos em diferentes museus da cidade. Ela discute como e porquê cada
objeto selecionado chegou ao museu, ajudando a entendê-los como parte da
história a ser discutida. Em espaços tão diversos como no Museu da Maré, o
Museu Nacional, e sua sala de aula, Carolina pacientemente busca mostrar que o
mundo tem vários lados e perspectivas. Ao fazer isso, tanto libera os alunos
que têm vergonha e medo de seguirem suas crenças afro-brasileiras como
sobretudo talvez evite alguns futuros intolerantes. Todos os
trabalhos do mestrado profissional em Ensino de História procuraram oferecer materiais a serem usados por outros
professores, no formato de livros, jogos, videos, material eletrônico e outros.
O de Carolina é um livro impresso onde disponibiliza um roteiro crítico e
atividades para as visitas aos museus.
Eu
não poderia falar que em algum momento tive dificuldade em trabalhar com o
candomblé nos meus cursos de história do Brasil. Talvez seja bom esclarecer,
para quem não conhece a PUC-Rio, que ensinando lá há 23 anos nunca, absolutamente
nunca, vi minha autonomia docente ser questionada e, formando professores de
história e historiadores, além de sociológos, e meninos de outras formações,
espero ter conseguido mostrar os conceitos que me fazem selecionar tal tema nos
meus programas. Além de ser um grande tema para discutir os escravizados como
sujeitos históricos, a presença das culturas africanas no Brasil, a superação
da lógica da dominação pela da negociação e conflito, a história do candomblé
mostra o conceito importantíssimo que é o de associação, a possibilidade de
recriar espaços comunitários, de imprimir neles memórias reconstruídas, de
pertencimento e de articulação política. Também acho que eu não devo isso
apenas às leituras cuidadosas dos documentos, livros etc. Mas muito mais ao
fato de ter sido acolhida no Ilê Omolu Oxum pela minha mãe, Ialorixá
Meninazinha d'Oxum, lindo exemplo de história de vida, e por todos os outros
pais e mães, e também meus filhos e filhas, irmãos e irmãs. Olorun Modupé.
Afinal, agradeço às novas mestres
por provarem mais uma vez que o axé da sala de aula está entre nós.
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