domingo, 27 de novembro de 2016

O axé da sala de aula


Ivana Stolze Lima (Fundação Casa de Rui Barbosa/ PUC-Rio)

Nos últimos dias me envolvi com a preparação para participar da mesa Religiosidade Afro-Brasileira e o Ensino de História, no Seminário ProfHistória Ensino de História da África, da cultura afro-brasileira e indígena na Unirio. É um mestrado profissional que funciona em rede nacional, que vem movimentando a pós-graduação dita acadêmica e, mais amplamente, vem movimentando a própria área de História. Passei várias horas lendo ansiosamente o máximo que podia de 3 dissertações fascinantes.
            O trabalho de Isabelle de Lacerda Nascentes Coelho, intitulado O Axé na Sala de Aula: abordando as religiões afro-brasileiras no Ensino de História (UFRRJ, 2016) (como percebem, subverti o seu título para esse relato), propõe uma preciosa "ferramenta" (ajô!) de papel e ideias, materializada em pranchas ilustradas para ensinar a filosofia, mitologia e epistemologia das religiões afro através da apresentação dos orixás, seus atributos, histórias e façanhas.
            O primeiro a abrir a roda, como não poderia deixar de ser, é Exu/Eleguá/Bará  e sua bela jogada de mestre pregando uma peça a pretensos donos da verdade. Disfarçado em um homem desconhecido, portando um barrete de duas cores, Exu passa por dois lavradores que desprezaram oferendas que lhe deviam ter feito. Até então amigos, passam a discutir sobre a cor do barrete do desconhecido. "É branco, com certeza", diz um deles, convencido que sua parcialidade é a única. "Vermelho, o mais vermelho possível", diz o outro. Acusações mútuas de cegos e mentirosos se sucedem, levando à briga e morte dos teimosos, incapazes de ouvir o outro e de pôr suas próprias visões de mundo em perspectiva.
            Quem conhece a história da escravidão e em especial as políticas senhoriais em relação às culturas africanas no Brasil, sabe que a tolerância nada mais foi que um estratégia de controle. O binômio repressão/tolerância foi usado em diferentes gradientes por delegados, juizes, senhores, feitores. O axé "deu uma volta" nessa lógica. O trabalho de Isabelle propõe ir além da chave da tolerância para propor uma ética da alteridade na sua sala de aula em Itaguaí. Esse trecho dá bem uma ideia da importância de seu trabalho para o desenvolvimento de subjetividades das crianças e jovens com que lida: "As atividades envolvendo narrativa mítica e recriação artística dos deuses do panteão afro-brasileiro através de desenho, foram de longe, as mais populares com a turma. Os momentos de debate, compartilhamento de ideias também foi bastante produtivo. No decorrer das discussões começaram a emergir desabafos, confidências, compartilhamento de memórias e experiências vividas com relação a diversas formas de preconceito e intolerância, não apenas ligadas ao tema afro-religioso. Este foi um momento importante de catarse coletiva e de fortalecimento dos vínculos de solidariedade, afetividade e empatia. Mesmo sendo bastante jovens, os estudantes se mostraram capazes de exercitar a autorreflexão e enfrentar seus próprios preconceitos." (p. 64)
            Os trabalhos dessas professoras/historiadoras tornam-se ainda mais relevantes e urgentes quando se considera as condições em que são gestados. Jessika Rezende Souza, autora de Entre a cruz e o terreiro: uma análise em torno da integração entre a religiosidade afro-brasileira e o ensino de história no Museu do Negro (UFRJ, 2016) diz que na escola onde trabalha teria sido questionada e desqualificada a abordagem do candomblé como não sendo tema de uma aula de história. Ooi??? Como assim não é tema da história? Em quase todas as disciplinas na minha atuação como professora de história do Brasil na graduação (e agora também na pós) esse tema se impõe, e olha que não deve ser só por eu ser filha de Ogun, mas por ser historiadora que preza um entendimento  complexo dos processos históricos. O trabalho de Jessika propõe uma visita cuidadosa e sensível ao Museu do Negro, sediado na Igreja do Rosário, abrindo assim a integração desse lugar de memória como uma forma de semear o conhecimento histórico em seus alunos. Jessika cutuca o currículo engessado e folclorizante, buscando as organizações negras, questionando a velha imagem da democracia racial e reclamando mais do que o "dever de memória", o "direito à história".
            Carolina Barcellos Ferreira traz um relato muito detalhado do que pode significar trabalhar com as "coisas de macumba" na sua prática de ensino em São Gonçalo. Ela e alguns colegas professores, cansados da eterna e inquestionada comemoração da Páscoa, promovem regularmente atividades para que os alunos sob sua responsabilidade saibam que o mundo é maior do que parece, com práticas que assegurem a expressão da diversidade religiosa. Em seu "Isso é coisa de macumba?" Elaboração de um material pedagógico de História sobre as religiosidades afro-brasileiras em museus do Rio de Janeiro (UERJ, 2016) , ela conta uma história muito tocante. Em visita ao Museu Histórico Nacional, diante do Templo de Oxalá, uma aluna não se conteve de medo e saiu correndo, conjurando o ato com um "cruz credo". Essa dura experiência poderia ter paralizado Carolina. Mas ela fez disso um tema de dissertação, construindo um projeto de observação de objetos religiosos em diferentes museus da cidade. Ela discute como e porquê cada objeto selecionado chegou ao museu, ajudando a entendê-los como parte da história a ser discutida. Em espaços tão diversos como no Museu da Maré, o Museu Nacional, e sua sala de aula, Carolina pacientemente busca mostrar que o mundo tem vários lados e perspectivas. Ao fazer isso, tanto libera os alunos que têm vergonha e medo de seguirem suas crenças afro-brasileiras como sobretudo talvez evite alguns futuros intolerantes. Todos os trabalhos do mestrado profissional em Ensino de História procuraram oferecer materiais a serem usados por outros professores, no formato de livros, jogos, videos, material eletrônico e outros. O de Carolina é um livro impresso onde disponibiliza um roteiro crítico e atividades para as visitas aos museus.
            Eu não poderia falar que em algum momento tive dificuldade em trabalhar com o candomblé nos meus cursos de história do Brasil. Talvez seja bom esclarecer, para quem não conhece a PUC-Rio, que ensinando lá há 23 anos nunca, absolutamente nunca, vi minha autonomia docente ser questionada e, formando professores de história e historiadores, além de sociológos, e meninos de outras formações, espero ter conseguido mostrar os conceitos que me fazem selecionar tal tema nos meus programas. Além de ser um grande tema para discutir os escravizados como sujeitos históricos, a presença das culturas africanas no Brasil, a superação da lógica da dominação pela da negociação e conflito, a história do candomblé mostra o conceito importantíssimo que é o de associação, a possibilidade de recriar espaços comunitários, de imprimir neles memórias reconstruídas, de pertencimento e de articulação política. Também acho que eu não devo isso apenas às leituras cuidadosas dos documentos, livros etc. Mas muito mais ao fato de ter sido acolhida no Ilê Omolu Oxum pela minha mãe, Ialorixá Meninazinha d'Oxum, lindo exemplo de história de vida, e por todos os outros pais e mães, e também meus filhos e filhas, irmãos e irmãs. Olorun Modupé.
            Afinal, agradeço às novas mestres por provarem mais uma vez que o axé da sala de aula está entre nós.

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