Paulo Fontes (Departamento de História da UFRJ)
As disputas de Roosevelt com a Suprema
Corte Americana, a polarização política que mergulharia a Espanha numa
sangrenta guerra civil, a escalada de leis e medidas repressivas na Alemanha
nazista, as lutas de Gandhi pela independência da Índia, nada disso, nenhuma
dessas notícias, nem mesmo o estado de sítio decretado por Getulio Vargas meses
antes, eram dignos de atenção ou interesse no humilde lar no interior de
Sergipe. Naquele dia 15 de fevereiro de 1936, toda energia e expectativas de
seu Zeca e, principalmente, de Dona Afra, estavam concentradas no nascimento de
mais um rebento da família, já bem numerosa, do casal de agricultores. Nascia
Arivaldo de Brito Fontes, desde logo alcunhado carinhosamente como Ari.
O menino nasceu saudável e forte. Seu olhar
expressivo e sorriso maroto seriam marcas por toda a vida. Como para todos por
ali, o trabalho começou cedo, na roça. Mas, o mundo não tardaria a chegar para
o pequeno Ari. Dentre suas lembranças de garoto, ele sempre recordaria a banda
do coreto da praça principal de Campos do Rio Real (então, recém renomeada como
Tobias Barreto por um decreto de Vargas em homenagem ao ilustre intelectual local)
tocando músicas de Louis Armstrong e Glenn Muller. Lembraria também do mapa da
Europa pintado no chão da mesma praça, enquanto o rádio transmitia notícias da
tomada da Normandia pelos Aliados e do avanço das tropas soviéticas em direção
a Berlim, em meio aos apupos e vivas dos locais.
Arivaldo também não tardaria a partir para
o mundo. Seguindo os passos de milhares e milhares de migrantes nordestinos, mas
mais especificamente dos seus irmãos mais velhos, Ari chegou ao Rio de Janeiro em
meados dos anos 50. No futuro, São Paulo seria seu amor (com seu orgulhoso e
apurado senso de direção e localização, conheceria a cidade como poucos), mas o
Rio nunca deixaria de ser sua paixão.
Irmão mais novo, ainda adolescente, foi
amparado por uma extensa rede familiar e de conterraneidade. Talvez por isso
tenha escapado ao duro trabalho na construção civil, “estágio probatório” da
imensa maioria dos nortistas nas
grandes cidades do Sul. Acabou
operário na indústria têxtil. Meses depois, indicado por um amigo, logo foi
labutar como auxiliar de alfaiate no centro do Rio. Aprendeu o básico do ofício
e, décadas depois, em sua casa, pequenos ajustes e a barra das calças das
crianças seriam sempre carinhosamente feitos por ele.
A alfaiataria fazia uniformes para a
Aeronáutica. A proximidade certamente facilitou a entrada do jovem, em idade de
prestar o serviço militar, naquela força. Não quis mais sair. O traje lustroso
e os olhares das moças embeveciam o vaidoso rapaz. Mas principalmente, a
estabilidade do soldo constante e as possibilidades de estudo e ascensão davam
a importante sensação que estava vencendo rápido na vida. E, além disso, havia
os aviões e as viagens, que cada vez mais faziam a sua cabeça. Lotado no
Correio Aéreo Nacional, conheceu os quatro cantos do Brasil e vários países
vizinhos. Animou-se a estudar e formou-se sargento em Guaratinguetá.
Mas a
potencial carreira militar seria interrompida. A noite carioca chamava o jovem
Arivaldo. Bem falante, namorador e com uma imensa facilidade de fazer amigos,
desbravava com furor os bares e bilhares de uma Lapa decadente, mas ainda cheia
de encantos. Por lá, conviveu, entre tantos outros, com Dercy Gonçalves,
Pixinguinha e Nelson Gonçalves, de quem para sempre seria um ardoroso fã. Um
sério acidente durante o serviço se somaria às dificuldades com a disciplina da
Força Aérea. Ari acabaria reformado precocemente e pilotar aviões passou a ser
um sonho acalentado de uma vida paralela que nunca chegaria a existir.
A pensão que
passou a ganhar da Aeronáutica não era muita, mas permitia a sobrevivência e
até viagens para Tobias Barreto e Aracaju. Numa dessas viagens, apaixonou-se.
Lourdinha, a bela moça, tímida e religiosa, tinha apenas 17 anos e estava
prestes a se mudar da capital sergipana para o Rio de Janeiro, onde iria
estudar e trabalhar, morando com a irmã mais velha. Conhecer as variadas
atrações da Cidade Maravilhosa foi uma vantagem estratégica para o insistente e
galanteador Arivaldo.
Em meio às turbulências dos anos rebeldes,
viveriam um namoro de anos dourados. Passeios de lambreta, nascer do sol em
Copacabana, jogos do Vasco no Maracanã, excursões a Paquetá. Muitos amigos e
amigas. Alguns cariocas. A maioria, conterrâneos, aos quais os locais em tom
jocoso, chamavam de “paraíbas”. Ari estava imerso numa rede informal de
sociabilidades e auxílio mútuo dos “paraíbas”. E eram essas relações que o
ajudavam a achar bicos que complementavam a renda para além da pensão.
O longo namoro com Lourdinha virou
casamento e Ari decidiu arriscar a sorte como taxista. Os tempos eram duros e o
negócio não deu certo. Com poucas perspectivas e um recém nascido de 3 meses, o
casal acabou decidindo partir para São Paulo, cidade em que tinham parentes e
onde todos diziam haver maiores e melhores oportunidades. Deixar o Rio e
suportar o frio (chegaram em meio à garoa de julho) e a sisudez de primeira
hora dos paulistanos não foi tarefa fácil. Foi em São Paulo, no entanto, que
Arivaldo conseguiu estabilidade e construiu, de fato, uma família. Mesmo com
saudades da longínqua Tobias e de um
Rio romântico, a Paulicéia seria, para sempre, o seu lar.
Depois de penar alguns meses entre o
desemprego e a função de vendedor numa pequena loja de sapatos, a oportunidade,
enfim, apareceu. Os estudos dos tempos de Aeronáutica possibilitavam almejar um
trabalho de escritório. Um conhecido o indicou e Ari arrumou um
emprego num escritório de contabilidade no centro da cidade. O “milagre”
econômico da ditadura impulsionava a economia e uma enxurrada de novas leis,
como a do FGTS, mudava o cenário das relações trabalhistas. No pulsante setor
de construção civil uma leva de pequenos
empreiteiros, mestre de obras e pedreiros especializados precisavam de alguém
que cuidasse de suas contas e da burocracia com o “pessoal.” Arivaldo virou
esse cara. Sagaz, mas simples e educado no trato, conseguia ótimo trânsito do
engenheiro “metido a besta” até o peão “rústico” recém-chegado do Nordeste.
A homérica viagem no Fusca, com a mulher e
filhos (naquele momento dois meninos e uma menina. Outra menina ainda chegaria)
para visitar a terra natal era uma inegável demonstração de “sucesso”. De fato, pegando carona no turbilhão de algumas
obras do Brasil Grande – metrô em São Paulo, rodovia Imigrantes, silos no Norte
do Paraná – o agora Seu Ari dava assistência a um número crescente de pequenos
construtores. Com a ajuda de alguns, ousou largar a condição de empregado e, no
final dos anos 1970, abrir seu próprio escritório. Para dar conta, decidiu
fazer, às noites, um curso de contabilidade.
As coisas pareciam prosperar. Lourdinha,
seguindo a modernidade feminina de então, tirou carta de motorista. O Fusca
pode ser trocado por um Opala usado e depois, por uma espaçosa Caravan. Com o
apartamento financiado na Vila Mariana e as (ainda) boas escolas públicas da
região, a família tinha uma decente vida de classe média baixa, sonhando em
alguns momentos em tornar-se classe média de
verdade.
O pequeno escritório de dois ambientes da
Rua Senador Feijó era o castelo de Arivaldo e o centro da cidade seu espaço de
ação. Para as crianças, era uma enorme diversão ir ao trabalho do papai e
almoçar na cidade. Mais tarde, os
dois filhos homens trabalhariam ali em algum momento como office-boys. Da janela de seu escritório assistiu, entre
desconfiado, temeroso e orgulhoso, um dos seus filhos, ainda adolescente, se
politizar durante a Campanha das Diretas. Mas, seu castelo também guardava seus
segredos e os vestígios de uma, na maior parte do tempo, moderada vida boêmia
que ele não deixava de manter.
De qualquer forma, Arivaldo procurava
encarnar a figura do pai provedor e
rígido. Para tanto cultivava um peculiar bom humor ranzinza, frequentemente ironizado
dentro de casa. Mas, na verdade, Ari era
um pai carinhoso e sensível. Como a maioria dos pais, teve mais facilidade em
lidar com a infância do que com a adolescência dos filhos. Adorava brincar e
passear com seus meninos e meninas. Os domingos pela manhã eram sagrados.
Ibirapuera, parques de Interlagos ou as costumeiras visitas aos amigos e
parentes, especialmente em Guarulhos e São Miguel.
Educação, para ele, era fundamental. Junto com
sua mulher, inculcou nos filhos o valor dos estudos. Com isso não havia trégua.
De longe, seu maior orgulho na vida foi ter formado os quatro filhos. Os netos e
netas de analfabetos se tornariam um professor universitário, um advogado e
duas médicas. Sem os esforços descomunais do casal, o empenho particular de Lourdinha
e a atenção e apoio de Ari isso jamais teria sido possível. Quando, por
exemplo, percebeu no filho mais velho um gosto particular pela leitura, Ari não
mediu esforços e recursos para comprar uma dispendiosa e quilométrica
enciclopédia que tomava toda estante da sala. Encheu a casa de obras clássicas
compradas no “círculo do livro” e nas coleções em fascículos de banca de
jornal. Em outro filho estimulou ao
máximo sua vocação musical.
Ser humano é
ser complexo e contraditório. O filho, adolescente, jamais entenderia como Ari muitas vezes votava
na esquerda, mas criticava os direitos humanos “para bandidos” e apreciava
programas de TV policialescos e sensacionalistas. Nunca compreenderia
exatamente como se coadunava um autêntico orgulho das origens e um forte
nacionalismo (invariavelmente expresso nos esportes que curtia,
principalmente o futebol, o vôlei e o boxe, mas também o automobilismo)
com um certo “complexo de vira latas”, que colocava brasileiros e latino-americanos
sempre para baixo em relação aos norte-americanos e europeus.
Gostava do Silvio Santos e ao mesmo tempo
adorava a rádio Cultura dedicada à música clássica. Chopin e Tchaikovsky eram
suas predileções. E revelavam uma inusitada admiração pelo Leste Europeu.
Divertia-se inventando uma ascendência polonesa para a família. O Brito do seu
nome seria uma corruptela de um impronunciável sobrenome polaco. E o “Blauth”
que colocou como nome complementar do segundo filho era atribuído a uma
homenagem a um suposto bom jogador da seleção polonesa que vira jogar anos
antes.
Arivaldo
amava, sobretudo, a vida e as pessoas. Prezava sobremaneira as amizades e a
importância da lealdade. Para ele delações nunca poderiam ser premiadas. Era um
ser da vida social. Curtia levar os amigos para diferentes lugares e mostrar
novidades. Sua preocupação com o outro era sempre genuína e emocionada. Gostava
de feiras e mercados. Generoso, não era incomum que fizesse uma boa “feira” e
desse de presente numa visita surpresa para algum amigo ou parente necessitado.
A crise
econômica dos anos 1980 e as reformas neoliberais dos anos 1990 afetaram
profundamente o mundo da construção que Arivaldo conheceu. Boa parte do que
sabia fazer estava obsoleto e seu escritório-castelo entrou numa longa, lenta e
definitiva decadência. De certa forma, foi sua decadência também. Com os filhos
criados e com seus próprios rumos, a necessidade de recursos e de foco parecia
menor. Então, em 2003, os excessos alimentares e etílicos, a negligência com a
saúde e a ausência de exercícios físicos cobraram um preço muito caro. Arivaldo
teve dois AVCs seguidos e só não morreu porque a mulher e a filha médica foram
particularmente rápidas no socorro.
Sobreviveu,
mas nunca mais foi o mesmo. Com metade do corpo paralisado, passou a depender
completamente dos cuidados da mulher. Lourdinha aposentou-se e passou a se
dedicar com carinho e afinco ao amor de sua vida. Lúcido, Ari nunca se
conformou completamente em ter no seu corpo uma prisão. Apesar disso, teve momentos de muita felicidade.
Foi uma alegria a chegada dos
netos, que em 2016, seriam
sete. Também foi um momento especial a
viagem de toda família para um Réveillon em Sergipe, com direito a uma excursão
a Tobias Barreto e um emocionante almoço com os seis irmãos e irmãs de Ari
àquela altura remanescentes.
A coisa mais
fantástica de ser historiador social é descobrir e estudar a importância das
pessoas comuns na história. Como muitos já destacaram, 2016 foi um ano marcado
pela morte. Neste ano, tão duro e difícil, tivemos a perda de dezenas de
celebridades e figuras importantes. Algumas como Leonard Cohen, Mohamad Ali,
Fidel Castro e Dom Paulo Evaristo Arns, de minha particular admiração. Mas para mim, 2016 também foi o ano da vida.
Em dose dupla. Leon e Miguel, tais como as flores no asfalto de que nos falava
o poeta Drummond, chegaram trazendo imensa alegria no presente e uma inabalável
esperança no futuro. Tivemos a felicidade de ver um encontro de Ari com os
netos. Eles saberão que, num golpe do ciclo da vida, eu fui pai e perdi o pai
no mesmo ano. Mas, certamente crescerão sabendo o quão incomum e extraordinário
foi Arivaldo, esse homem comum. Descanse em paz, papai!
Após complicações
derivadas de uma pneumonia, Arivaldo de Brito Fontes faleceu no dia 30 de
dezembro às 19h20, cercado do amor e carinho de sua mulher, filhos, genros,
nora e netos.
Hermosa columna. Un gran abrazo,
ResponderExcluirAngela
Conseguir escrever parte da sua própria história, se comportando como um verdadeiro (e único) historiador, imagino que é uma senhora façanha!
ResponderExcluirImpossível Paulinho ler, imaginar e não se emocionar. Esses dias pensei bastante o quanto eu gostaria de ter convivido mais com você. As vezes tinha vontade de ir ao Rio, conhecer tua amada, teus filhos. Mas tô velha, mas bem, vivo legal com meu cachorrinho e 3 gatinhas. Mas, pode crer, sempre me senti meio tímida perto de você: é essa admiração imensa que sinto por você. Por tudo o que ví você fazer e o que não ví também, suas leituras, seus livros e agora esse "conto" tão lindo! Teu pai, sua família (com altos e baixos que sempre há) estão de parabéns por terem alguém como você e uma vontade de conhecer tua companheira, que só pode ser muito legal, a mãe dos teus filhos. Abraços, muita saudade.
A força da história está na humanidade que a faz, esse laço único que une a família de linhagem à uma vaga e intensa que se encarna na experiência comum, naquilo que nos faz ser: o viver e o morrer.
ResponderExcluirLindo texto na linda a humanidade que costura os sentidos. E como vc mesmo encerra suas palavras, ao trazer Leon e Miguel: "O rei morreu. Viva o rei!"
PARABÉNS PELO LINDO TEXTO.COOM CERTEZA DO CÉU SEU PAI QUERIDO E NA TERRA SEUS IRMÃOS ESTÃO ORGULHOSOS DE VC.NADA MAIS GRATIFICANTE DO QUE O RECONHECIMENTO E GRATIDÃO. DEUS OS ABENÇOE.UM FORTE ABRAÇO A VC E TDS DA FAMÍLIA E CONTE COM MINHAS ORAÇÕES.
ResponderExcluirHistória bonita e emocionante. Gostaria de ter conhecido o senhor Ari. Abraço!
ResponderExcluirUm abraço forte, Paulinho!
ResponderExcluir